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I -
\
DIRETOR
EDITORIAL:
COPIDESOUE:
Marcelo
C
Araujo
Lessandra
Muniz
de
Carvalho
EDITOR:
REVISÃO:
Márcio
Fabri
dos
Anjos
Leila
Cristina
Dinis
Fernandes
TRADUÇÃO:
DIAGRAMAÇÃO:
Lúcia
Mathilde
Endlich
Orth
Junior
Santos
COORDENAÇÃO
EDITORIAL:
CAPA:
Ana
Lúcia
de
Castro
Leite
Alfredo
Castillo
Titulo
original:
La
phi/osophie
de
la
religion
©
Presses
Universitaires
de
France.
2009
EDITORA
iiíi
IDÉIAS.·
'tLETRAS
Editora
Idéias
&
Letras
Rua
Pe
Claro
Monteiro.
342 -
Centro
12570-000
Aparecida-SP
Tel.
(12)
3104-2000 -
Fax
(12)
3104 2036
Televendas:
0800 16
00
04
vendas@1deiaseletras.com.br
http//www.ideiaseletras.com.
br
Dados
Internacionais
de
Catalogação
na
Publicação
(CIP)
(Câmara
Brasileira
do
Livro,
SP,
Brasil)
Grondin,
Jean
Que
saber
sobre
Filosofia
da
Religião/
Jean
Grondin;
[tradução
Lúcia
Mathilde
Endlich
Orth].
-
Aparecida,
SP:
Idéias
&
Letras,
2012.
12-03293
Titulo
original
La
philosophie
de
la
religion
Bibliografia.
ISBN
978-85-7698-132-9
1.
Religião
-
Filosofia
1.
Título.
índices
para
catálogo
sistemático:
1.
Filosofia
da
religião
210.1
CDD-210.1
1
Sumário
Introdução -Religião e sentido da vida ................................... 7
1 - Religião e Ciência Moderna .............................................
11
1.
O
nominalismo
do
mundo
contemporâneo
....................
13
2. A religião foi ultrapassada pela ciência moderna? ............
17
2 - O vasto campo da Filosofia da Religião .........................
..
21
3
-A
essência da Religião:
um
culto crente ........................... 27
1.
Abordagens funcionalistas e essencialistas ........................
28
2. O caráter imemorial do religioso .....................................
31
3.
Os
dois polos da religião ................................................. 33
4.
Um
sentido
da
vida traduzido
por
símbolos ....................
36
5.
A universalidade
da
religião ............................................
38
4-
O
mundo
grego .................................................................
41
1 A "
·-
"
41
.
re
1g1ao
grega ........................................................... .
2.
Os
filósofos pré-socráticos e a religião ............................
.44
3. Platão:
uma
religião
que
se
tornou
metafísica .................
.46
4. A fundação platônica
da
metafísica ................................ .48
5.
A crítica
da
tradição mítica: a agatonização do divino ..... 52
6. Platão e a religião
da
cidade ............................................ 54
7. Aristóteles: a racionalização
do
divino
e da tradição mítica ......................................................... 59
8. A metafísica
do
espírito ...................................................
60
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l
fJ
· l · - d A · ' l 62
9. A desmlto og1zaçao e
nstote
es
.............................. · · · · ·
10. O impulso
da
filosofia
da
religião no helenismo ...........
64
S - O
mundo
latino ................................................................ 67
1.
A religião,
uma
palavra latina .......................................... 67
2.
A religião segundo Cícero: a reler atentamente ................ 68
3.
O laço religioso segundo Lactâncio ................................. 74
4.
A síntese do platonismo e do cristianismo
em
Agostinho .................................................................
75
6 - O
mundo
medieval ...........................................................
81
1.
Duas fontes
do
saber. ......................................................
81
2.
A filosofia
da
religião de Averróis e de Maimônides ......... 83
3.
A virtude de religião segundo Tomás de
Aquino
............. 88
7-0
mundo
moderno ........................................................... 93
· ' · ' B'bl. 96
1.
Spmoza e a
cnnca
a 1
1a
................................
·· ·· ·· ··
· · · · · ·
2. A religião moral de Kant.. ............................................... 99
3. A intuição do infinito
em
Schleiermacher ..................... 104
4. A sistematização filosófica da religião
em
Schelling e Hegel.. ................................................
··
.107
5.
As
críticas
da
religião após Hegel .................................. 109
6. Heidegger e a possibilidade do sagrado ......................... 114
Conclusão ................................................... · · · ·
··
· ·
·· ·· ·· ··
· · · ·
··
· · · .119
B1
.bl1ºografia ........................... · ... · · · · · · · .12 5
····································
Introdução
Religião
e
sentido
da
vida
religião oferece
as
respostas mais sólidas, mais an-
tigas e mais fidedignas à questão do sentido
da
vida. Por isso ela não
pode
deixar de interessar à
fi-
losofia
em
sua própria busca de sabedoria. O objeto supremo
da maioria das religiões, Deus, representa,
por
sua vez,
uma
das melhores respostas à questão filosófica de saber
por
que
o ser e não o nada. A
outra
resposta consistiria
em
afirmar
que o ser nasceu do acaso. É na religião que
se
articulou, e de
maneira infinitamente diversa,
uma
experiência
da
vida que
reconhece nela
um
percurso que tem sentido,
porque
esta
vida
se
inscreve
num
conjunto
que
comporta
uma
direção,
um
fim e
uma
origem. Esta direção e esta origem
podem
ser
determinadas
por
potências naturais
ou
sobrenaturais,
por
uma
história que
se
pode
hoje qualificar de mítica, mas cada
vez a vida
se
reconhece comandada
por
algo superior que ha-
bitualmente é o objeto de
uma
veneração, de
um
culto e de
um
reconhecimento, sejam quais forem. está
uma
resposta
à questão do sentido
da
existência, que sempre apaixonou,
mas
às
vezes
também
atormentou, a filosofia, de Platão até
Bergson, Heidegger e Lévinas.
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8
Que
saber
sobre
Filosofia
da
Religião
existem três respostas possíveis à difícil, mas gritante,
questão
do
sentido
da
existência:
1.
As respostas religiosas
ou
espirituais
no
sentido
amplo,
aquelas que reconhecem, de maneira
natural
ou
refletida,
que
a existência está religada (religare, é
uma
das etimologias anti-
gas
que
foi
proposta
para
o
termo
religião,
não
importa
se
ela
é fantasista) a alguma
potência
superior; não é falso dizer
que
essas respostas prevaleceram
na
história
da
humanidade,
em
quase todas
as
suas culturas e
em
todas
as
suas épocas.
2. As respostas seculares mais recentes. Elas
nem
sempre
contestam
a existência de
uma
transcendência, mas
apostam
mais
na
felicidade
ou
bem-estar dos seres
humanos.
Existem
duas grandes variantes dessas respostas:
uma
forma
mais
uto-
pista e
humanista
e
uma
versão mais
hedonista
e individual.
A resposta
humanista
à questão do
sentido
da
existência as-
pira
à
melhoria
da
condição
humana.
Ela
pretende
reduzir o
sofrimento
e
lutar
contra
a injustiça,
porque
supõe que a
vida
humana
representa
um
fim
em
si
e
que
sua
dignidade merece
ser defendida. São respostas
completamente
honráveis
que
compõem
a "religião" mais
ou
menos
declarada de nossas
sociedades avançadas, mas todas elas pressupõem
as
respos-
tas religiosas,
às
quais elas fazem empréstimos
importantes
quando
falam
da
dignidade
humana
ou
da
injustiça
que
é
preciso combater, mas
também
quando
sonham
com
uma
libertação futura.
As respostas mais hedonistas
proclamam
por
sua vez
que
é preciso gozar esta vida,
porque
ela é a
única
que nos é dada.
É evidente
que
a resposta religiosa,
ou
mais exatamente
sua
ausência, encontra-se aqui pressuposta: é
porque
não
ho-
rizonte superior,
nem
transcendência,
que
é preciso aprovei-
tar
plenamente
nossa vida. Neste caso é o prazer
ou
o gozo
imediato
que deve ser a fonte de nossa felicidade. Agostinho
Introdução
9
teve razão
quando
assinalou
que
também
aqui
se
tratava
de
religião (A
cristã, 1.38.69): aqueles
que
rejeitam
os
bens
intemporais
veneram
de
fato
as
coisas temporais,
porque
é
delas
que
eles esperam a beatitude. Isto
nem
sempre será ad-
mitido,
mas
realmente neste caso
uma
forma
de
"religião",
isto é,
um
culto e
uma
crença
em
alguma
coisa
que
nos
torna
felizes.
3. Enfim,
podemos
encontrar
"respostas" à questão
do
sentido
da
vida
que
consistem
em
dizer
que
a vida
não
tem
sentido (ou
que
a
própria
questão está malcolocada). Mais
uma
vez,
se
achamos
que
a vida não
tem
sentido
ou
que
ela
é absurda, contestamos
que
ela
tenha
um
sentido religioso
ou
transcendente, realmente
digno
de
e verificável. Resposta
desiludida, lúcida
por
alguns lados,
porque
ela
apreendeu
a
plena dimensão
do
mal e
do
incompreensível sofrimento
da
existência, mas
que
não responde verdadeiramente à questão:
por
que
vivemos?
Quanto
aos
que
julgam
que
a questão está malcolocada,
é preciso perguntar-lhes
como
conviria colocá-la. A questão
pode
certamente
ser expressa de
outra
forma, mas concebe-
mos mal
uma
existência de homo sapiens, isto
é,
de
um
ser
vivo consciente de
sua
condição,
que
não
se
coloca, seja
em
que grau for, questões sobre o
sentido
de sua breve estadia
no
tempo,
mesmo
que
essas questões devam
continuar
abertas
(e
elas permanecerão abertas, mais
ainda
para
a filosofia do
que
para a religião). É neste sentido
que
Agostinho dizia
do
ser
humano,
no
começo
de
suas Confissões,
que
ele é
um
enig-
ma
para
si
mesmo. A filosofia é
um
fervilhar desse enigma,
sem
ignorar
que
a religião
pretende
trazer-lhe
uma
resposta.
A tarefa
de
uma
filosofia
da
religião é
meditar
sobre o
sentido dessa resposta e o lugar
que
ela
pode
ter
na
existência
humana,
ao
mesmo
tempo
individual e coletiva. A filosofia
\ ,
_}
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1 o !
Que
saber
sobre
Filosofia
da
Rellglão
da religião pretende por conseguinte ser uma reflexão
sobre
a religião, sobre sua essência e suas razões, e até sobre sua
sem-razão. Mas o duplo sentido do genitivo,
ou
do comple-
mento nominal, na ideia de uma "filosofia
da
religião"
aqui a pensar, no sentido em que o genitivo no "medo dos
inimigos"
(metus
hostíum) pode exprimir
ao
mesmo tempo o
medo que temos dos inimigos (genitivo objetivo) e o medo
que
os
inimigos têm de nós (genitivo subjetivo). O propósito
de uma filosofia da religião não é somente refletir, a distância,
sobre um objeto particular, como
se
faz
numa
filosofia da
cultura,
da
arte, do direito
ou
da linguagem. O genitivo sub-
jetivo pretende também ser tomado em conta: talvez haja al-
guma coisa semelhante a uma filosofia
que
pertence
à própria
religião,
uma via da sabedoria,
se
quisermos, que a filosofia,
em sua própria busca de sabedoria
o sentido da palavra
philo-sophia), não poderia desdenhar e da qual ela tem coisas
a aprender: e
se
houver mais sabedoria na religião do que na
própria filosofia?
>
E -
1.
Religião
e
Ciência
Moderna
..
e a filosofia reconhece de boa vontade que a reli-
gião oferece
as
respostas mais eficazes à questão do
sentido da existência, ela também sabe que
essas
respostas perderam hoje sua evidência. Não por toda a parte,
longe disso, porque nossa época também é a época de uma
ressurgência do religioso sob diversas formas, apesar do prog-
nóstico, falso, de seu próximo desaparecimento: forte cresci-
mento dos fundamentalismos, midiatização dos papas e das
grandes figuras religiosas, proliferação das espiritualidades
ecléticas, retorno à religião nos países do Leste (mas também
na China) outrora ateus, persistência das questões últimas e
da crença nas sociedades avançadas (numa pesquisa feita em
2008, 92% dos americanos diziam crer em Deus).
Se
dizemos da religião que ela perdeu sua evidência, é por-
que a medimos com parâmetros de um saber experimental e
científico, aquele que
se
impôs como a via privilegiada, quan-
do não exclusiva, da verdade, nos tempos modernos, que
ela
não pode realmente satisfazer, pois suas origens
são
muito mais
amigas do que a ciência. A religião comporta elementos de
fé,
de tradição, de rito, parece fortemente ditada por necessidades
subjetivas e remeter ao inverificável, outros tantos elementos
que minam sua credibilidade
aos
olhos da ciência moderna.
Ao
mesmo tempo em que permanece muito forte, força que
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1 1
12
Que
saber
sobre
Filosofia
da
Religião
faz
parte de seu mistério, a religião
se
tornou uma questão cada
vez
mais problemática aos olhos da filosofia.
A consciência histórica dos dois últimos séculos, com o ine-
gável
impulso de relativismo que
ela
pressupõe, atingiu a muitos:
jamais
se
teve tanta consciência do grande número de religiões
(podemos contar mais de dez mil denominações no momento
atual) e
da
diversidade de suas origens culturais e históricas.
Isso
tem por efeito relativizar a própria mensagem religiosa: como
se
pode afirmar que uma única religião encarna a via privilegiada
da
salvação?
As
religiões que o fazem, aquelas que insistem na
unicidade e no caráter sobrenatural da revelação na qual
se
auto-
rizam, como
as
convida sua tradição, correm o risco de aparecer
como crispações e reações
um
pouco desesperadas a
essa
relativi-
zação histórica,
aliás
dificilmente contestável.
É verdade que
se
fala
muito, mas pouco tempo, da
"expe-
riência
religiosà', e justamente em razão da ascendência exercida
pelo modelo científico, mas a ciência tende a ver nisso uma for-
ma
ftaca de saber que depende da simples crença ou da "apostà'
para falar como
Pascal.
Mas
falar
de "apostà' é ainda pressupor
um
modelo matemático caro à ciência moderna, o do cálculo
das probabilidades, como também o sabia
Pascal:
em vista da
eternidade que nos espera e
da
duração tão irrisoriamente curta
de nossa vida, é melhor assumir o risco da
fé,
que tem o mé-
rito de oferecer
um
reconforto aqui e agora, prometendo-nos
ao mesmo tempo
uma
bem-aventurança eterna, sem nenhum
parâmetro com o que
se
pode esperar nesta vida:
"Assim,
nossa
proposta está
numa
força infinita, quando o finito a arriscar
[ ... ] e o infinito a
ganhar"
(Pensées,
Brunchvicg, 233). Continua
aqui pressuposto o quadro da ciência moderna com suas exigên-
cias
de cálculo e rentabilidade. Aqui a religião é considerada, até
certo ponto, à maneira de uma "hipótese" (científica), adorada
por alguns, porque
ela
responde a suas necessidades mais ou me-
1111111111111111111111111111
1.
Religião
e
Ciência
Moderna
13
nos confessadas, mas que outros rejeitam porque ela não satisfaz,
justamente,
às
normas da ciência. A religião aparece, portanto,
como uma questão privada
ou
subjetiva, dependendo dos gos-
tos
ou
das apostas de cada um. O conhecimento "objetivo" da
realidade depende da ciência.
1.
O
nominalismo
do
mundo
contemporâneo
O horizonte de pensamento, bem recente, que
na
re-
ligião
uma
construção cultural que se acrescenta a uma rea-
lidade, que
a ciência física seria capaz de conhecer, é o
do
nominalismo. Este é
uma
resposta à questão de saber o que
existe realmente: "existir" para ele é
ser,
ao invés de não
ser,
isto
é,
sobrevir realmente no espaço, existência que
se
deixa
comprovar por nossos sentidos e nossos instrumentos de me-
dida. Esta mesa ou este livro existem, por exemplo, porque
eu
os
vejo diante de mim.
Nem
sempre
se
sabe, mas
essa
é
uma
concepção relativamente recente
da
existência, concepção
que é própria ao nominalismo. Para ele existem realidades
individuais, materiais, portanto perceptíveis
no
espaço e no
tempo. Assim, para o nominalismo,
as
mesas e
as
maçãs exis-
tem, mas
os
unicórnios,
os
anjos
ou
o Papai Noel não existem,
são apenas ficção.
As
noções universais não existem também,
são apenas nomes (nomina, daí sua denominação) que servem
para designar
um
conjunto de indivíduos que possuem esta
ou
aquela característica comum, individualmente observável.
1
Esta é urna visão tão evidente das coisas e que determina de
modo tão decisivo nosso pensamento que todos nós esquece-
mos que
se
trata de urna concepção bem-particular da existên-
'C:
PANAcc10,
"La question du nominalisme", em
A.
JACOB, Encyclopédiephi/osophique
unrverse/le.
PUF,
t.
1,
1989, 566.
---·---">
...............
_
-·--
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' -=
______
_....
.........................
1111111
...
.....
14
Que
saber
sobre
Filosofia
da
Religião
eia, isto
é,
a concepção que concede a prioridade exclusiva do
ser à existência individual e contingente.
Existe pelo menos
uma
outra concepção do ser que é
mais antiga e contra a qual a concepção nominalista foi pa-
cientemente elaborada. À vista da concepção moderna e no-
minalista, é
uma
concepção que parecerá bizarra na medida
do
possível, a fortiori à nossa época, a do nominalismo sem
reserva. É a concepção que compreende o ser não como exis-
tência individual, mas
como
manifestação
da
essência, cuja
evidência seria primeira. Isso nos parece incongruente, por-
que, para nós, a essência é segunda, ela
se
acrescenta, por
abstração, à existência individual. Ora, essa concepção era a
dos gregos, especialmente de Platão, para
quem
o individual
possui
uma
realidade de segundo grau. Ele é efetivamente se-
gundo
em
relação à evidência mais ofuscante da essência (ou
da espécie, porque
se
trata do mesmo termo em grego:
eidos)
que ele representa: assim,
por
exemplo,
um
ser
humano
ou
uma
coisa bela é apenas
uma
manifestação (bem efêmera!) de
uma
essência
ou
de
uma
espécie. A essência,
como
seu
nome
indica exatamente
(esse),
encerra o ser mais pleno, porque o
mais permanente.
Não obstante, essa concepção que nos parece tão insólita
sustentou o pensamento ocidental até o fim da Idade Média.
Ela começou a ser criticada pelos autores que foram chama-
dos nominalistas, entre os quais Guilherme de
Ockham
(fim
do século XIII 1350). Ironicamente, a motivação dele era
inicialmente teológica: é que ele achava que a onipotência de
Deus, da qual a Idade Média tardia tinha
uma
viva consciên-
cia, parecia incompatível com uma ordem eterna de essências
que viria de alguma forma limitá-la.
Se
Deus é rodo-poderoso,
ele pode a todo momento transtornar a ordem das essências,
agir de
modo
que o ser
humano
possa voar
ou
que
os
limoei-
•••••••••
1.
Religião
e
Ciência
Moderna
15
ros produzam maçãs. Para Ockham,
as
essências são, portanto,
apenas nomes e sucumbem a sua proverbial navalha.
Essa concepção foi contestada
em
sua época (entre
ou-
tros motivos
porque
ela parecia incompatível
com
o
dogma
da
eucaristia,
em
que a transformação
da
essência é crucial),
mas ela acabou, lentamente, mas
com
certeza,
por
triunfar
na modernidade, a
ponto
de eclipsar totalmente a
outra
visão da existência. Dessa forma
não
existem mais para a
modernidade
senão entidades individuais e materiais.
Co-
nhecer essas realidades não é mais conhecer
uma
essência,
mas referenciar regularidades
ou
leis
no
seio das realidades
individuais, supostas
como
primeiras. Essa concepção da
existência penetra de lado a lado a ciência
da
modernidade,
e não é
de
surpreender
que
ela
tenha
dominado
seu pensa-
mento
que se
pode
dizer "político",
no
qual a preeminência
do
indivíduo se
impõe
cada vez mais
como
a única realida-
de fundamental.
Este nominalismo vai de par
com
a atenção que a ciência
moderna
presta ao que é imediatamente constatável.
Os
con-
ceitos e
as
ideias
que
interessavam à ciência tradicional, todos
eles, tornaram-se duvidosos e segundos. Mesmo
as
ciências
humanas que
se
tornaram "sociais" na esteira desse processo,
precisam de positividades individuais e espacialmente obser-
váveis. É que
as
ideias não são mais manifestações do ser, mas
fatos da sociedade, dos quais se imagina poderem ser objeto
de
uma
observação empírica. Calcamos aqui sobre
as
ciências
humanas uma concepção do ser que, com roda a certeza, foi
tomada das ciências da realidade física
qual
se
reduz daí
em diante todo ser).
É evidente
que
esse nominalismo é averiguado
como
particularmente ruinoso para a própria religião e sua justa
compreensão. É
uma
parvalhice dizer que
as
realidades
da
1
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{
16
Que
saber
sobre
Filosofia
da
Religião
religião - a existência
do
divino,
por
exemplo -devem criar
problema
num
quadro nominalista: Deus existe como
uma
maçã
ou
uma
formiga?
Certamente
não. Portanto, Deus não
existe para certa modernidade
ou
existe a título de supers-
tição inventada pelo cérebro
humano.
A concepção
que
fazia
do
ser
uma
manifestação da essên-
cia,
por
estranha
que
possa parecer, não
tinha
essas dificulda-
des,
porque
para ela a existência individual e contingente era
sempre derivada. Portanto, a existência
do
divino não criava
problema para ela mesma, porque era primeira.
Quanto
à
fé,
ela era não
tanto
a questão de
uma
opção pessoal
do
indiví-
duo, mas
um
manter-se
na
evidência
da
essência divina,
um
saber-se envolvido
por
sua fidelidade
que
nada
tinha
a ver
com
uma
opção que seria primeiramente a nossa.
Uma
filosofia
da
religião não
pode
ignorar este hori-
zonte
nominalista, o
da
ciência
moderna,
que
faz
da
reli-
gião
uma
questão tão problemática. Mas ela
também
sabe
que
a religião é mais
antiga
que
a ciência (cuja emergência
ela favoreceu
entre
os gregos
ensinando
que
o
mundo
for-
mava
um
cosmos
ordenado)
e
que
aquela
se
articulou
desde
então
independentemente
desta. Ela
também
não ignora
que
essas formas, digamos arcaicas,
do
religioso sobrevivem
muito
bem
à era
da
ciência,
enquanto
que
outras formas
de
saber, de experiência
ou
de
que
se
pode
dizer pré-científi-
cas não sobreviveram: elas subsistem talvez aqui
ou
lá, mas
práticas
como
a astrologia
ou
alquimia
quase desaparece-
ram. A
modernidade
pensou
durante
muito
tempo,
e
ainda
pensa,
às
vezes,
que
a
mesma
sorte seria a
da
religião. Mas
isso não aconteceu. A religião
continua
sendo
uma
forma
bem-viva e poderosa
da
existência
humana.
Essa surpreen-
dente
vitalidade
do
religioso
no
mundo
contemporâneo,
onde
os grandes líderes morais -de
Gandhi
a João Paulo
n\llllllllllllllllllllll
1.
Religião
e
Ciência
Moderna
17
II, passando
por
Martin
Luther
King, Elias Wiesel,
Oscar
Romero, Dalai Lama,
Madre
Teresa e
Abbé
Pierre -são
muitas vezes personalidades religiosas,
a pensar.
Como
explicar esta força
do
religioso
que
a atualidade parece não
desmentir,
muito
ao contrário? Pode-se dizer, pelo menos,
que
ela
testemunha
uma
experiência
da
vida
que
excede o
quadro
restrito
do
nominalismo.
Existe
uma
questão à
sombra
da
qual
se
mantém
hoje
toda
filosofia da religião.
2.
A
religião
foi
ultrapassada
pela
ciência
moderna?
É evidente
que
a ciência
tratou
mal diversas representa-
ções religiosas
do
mundo:
o
mundo
não foi criado
em
seis
dias (mas
numa
ínfima fração de segundo), o homo sapiens
descende de fato
do
macaco,
do
qual ele é próximo genetica-
mente, e Galileu
tinha
razão.
Também
é incontestável que 0
agnosticismo, talvez até o ateísmo,
do
mundo
moderno
está
profundamente
marcado pela concepção científica
do
mun-
do, para a qual a religião representa apenas
uma
forma de
superstição, e a
humanidade
ganharia
se
prescindisse dela.
Não
há,
porém,
nenhuma
dúvida de que
as
religiões
se
mantiveram no
mundo
moderno
"apesar de tudo".
Em
nome
da ciência moderna, a religião foi habitualmente proclama-
da morta, antiquada, ilusória e até perigosa pelos filósofos, e
ainda o
é,
de tempos em tempos,
por
autores recentes.
Cada
um
é livre para ver nela a sobrevivência de
uma
credulidade
supersticiosa, mas a persistência
do
religioso no
mundo
mo-
derno
é
um
fato. São sobretudo
as
ideologias que quiseram
suplantá-la, entre
as
quais o marxismo, e
que
rapidamente
1
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I
18
Que
saber
sobre
Filosofia
da
Religião
envelheceram.
Também
Hegel (1996, 145), será que ele não
tem razão ao dizer que é preciso pensar duas vezes
quando
se
quer
opor
sua própria autoridade à autoridade
da
religião,
porque isto seria opor-se a
uma
autoridade universalmente
reconhecida?
Pode-se
também
apelar para o testemunho dos próprios
cientistas
em
nome
dos quais
se
pretende falar. Evocaremos
aqui apenas o caso de Albert Einstein, de
um
lado, porque ele
é bem-conhecido
e,
de outro, porque ele foi
um
dos maiores
gênios
da
história
da
humanidade. O Time
fez
dele recente-
mente
a pessoa mais influente
do
século XX e até do segundo
milênio, e com razão.
Em
um
outro texto
muito
célebre
e,
claro,
muito
pouco conhecido, ele disse: ''Afirmo que o sen-
timento
religioso cósmico é o motivo mais forte e mais nobre
da
pesquisa científicà'.
2 Texto desconcertante para alguns,
mas que não é
da
pena de
um
cientista qualquer,
nem
do
ser mais piedoso do
mundo
(Einstein era judeu, mas quase
não era praticante,
ou
não o era absolutamente). Ele explicou
mais tarde o sentido desse sentimento religioso cósmico: "Se
existe algo
em
mim
que
se
possa chamar 'religioso', isto seria
minha
admiração sem limites pelas estruturas do universo,
na medida
em
que nossa ciência possa revelá-las".
Esta convicção de que
no
mundo
uma
"razão supe-
rior revelando-se
no
mundo
da
experiêncià' traduz para ele a
"ideia de Deus".
Em
seu ensaio de 1934, Como
vejo
o
mun-
do,
ele não hesitava
em
afirmar que "a ciência sem religião é
defeituosa, e a religião sem ciência é cegà'. Mas o Deus de
Einstein não é
um
Deus que
se
interessa
muito
pela sorte dos
humanos:
"Creio
no
Deus de Spinoza, que
se
revela na
ordem
harmoniosa do que existe, e não
em
um
Deus que
se
preocu-
2
A.
EINSTEIN,
Comment
je
vais
te
monde, 1979, 19.
r
••••••••••
1.
Religião
e
Ciência
Moderna
19
pa
com a sorte e
as
ações dos seres humanos" (telegrama en-
dereçado ao rabino Goldstein,
em
1929). Einstein explicava
por
que
em
seu livro de 1934:
"Eu
não posso imaginar
um
Deus que recompensa e
pune
o objeto de sua criação.
Não
posso representar-me
um
Deus que pautaria sua vida
na
ex-
periência da minha.
Não
quero e não posso conceber
um
ser
que sobreviveria à
morte
de seu corpo.
Se
ideias semelhantes
se
desenvolvem
em
um
espírito,
eu
o julgo fraco, temeroso e
estupidamente egoístà'.
O interesse desse testemunho é lembrar que não é abso-
lutamente justo afirmar que a religião teria sido construída
em
prejuízo
da
ciência moderna (mesmo que Einstein,
por
outro
lado, criticasse a fraqueza e a credulidade da maioria
das crenças religiosas). Pode-se
também
lembrar que aquele
que formulou a hipótese de
um
big-bang era
um
padre cató-
lico, Georges Lemaitre (1894-1966), mesmo que lhe tenha
dado
um
outro nome. Esta ideia de
uma
expansão crescente
do universo, desde sua repentina explosão, transformou-se
em
irrisão pelo astrônomo Fred Hoyle (1915-2001), que ha-
via declarado que não acreditava nesta teoria ridícula de
um
big-bang, segundo a qual o universo teria começado
por
uma
grande explosão. A expressão pretendia ser irônica, mas aca-
bou
sendo aceita pela comunidade científica.
Não vamos entrar aqui
em
um
debate com
as
ideias de
Einstein
ou
de Lemaitre, mas
nem
deixar também de lem-
brar que muitos dos melhores cientistas estão longe de ex-
cluir toda perspectiva religiosa. Mas
também
nos parece im-
portante sublinhar que eles não o faziam
como
cientistas, isto
é,
apoiando-se
em
resultados de pesquisa rigorosa.
Quando
Einstein fala do sentimento religioso cósmico, ele o
faz
como
filósofo. Ele
faz
então filosofia da religião, e não ciência. Mas
também
é forçoso
notar
que é isso que fazem
também
os
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I -- -
_._.._.____
-
.--.
20
Que
saber
sobre
Filosofia
da
Religião
cientistas mais nominalistas, sem dúvida mais numerosos,
que acham
que
a ciência
torna
caduca
toda
forma de religião,
sendo ela integralmente redutível a
uma
forma de supers-
tição. Para eles, não
diferença real entre a cientologia, o
islã
ou
o cristianismo: trata-se de visões errôneas
do
real que
abusam da credulidade das pessoas.
Aqui
também
o cientista ultrapassa o
campo
de suas
competências, o da aquisição de conhecimentos metodologi-
camente verificáveis
em
um
dado campo
do
saber. A filosofia
da
religião
tem
ensinamentos valiosos a tirar dos cientistas
ateus, crentes e agnósticos, mas pode lembrar-lhes
que
as
consequências metafísicas que eles estão prontos a tirar de
suas descobertas, aureolando-se de seu estatuto de cientistas,
não
dependem
mais inteiramente da ciência, mas
do
campo
da
filosofia da religião, o qual
se
trata aqui de introduzir.
r
--
---
2.
O
vasto
campo
da
Filosofia
da
Religião
s debates que acabamos de evocar sobre a ciência
e a religião confirmam isto,
se
houver necessida-
de: a religião hoje é objeto das paixões mais for-
tes, o que comprova pelo menos sua vitalidade, e mais ainda
porque
se
trata de questões cujas implicações o
comum
dos
mortais apreende imediatamente.
A religião é certamente o lugar de todos
os
paradoxos.
Se
ela é muitas vezes denunciada
como
uma
forma de alie-
nação,
também
é vivida e
se
apresenta
na
maioria das vezes
como
uma
promessa de
libertação.
Quimérica
para uns, ela
é o que
de mais seguro, de mais fundamental e de mais
caro para
os
outros.
Enquanto
alguns a estigmatizam
como
a
raiz de todos os conflitos e de todas
as
guerras,
em
nome
de
uma
pretensão exclusiva à verdade absoluta, outros a saúdam
como
uma
mensagem de paz, de fraternidade e amor, que
se
encontraria, mais
ou
menos tacitamente, no
fundamento
de nossas sociedades democráticas. Repete-se, à porfia,
que
a
religião deve limitar-se à esfera pessoal
ou
privada, mas rara-
mente
isto foi levado à risca
em
praça pública.
Tudo
acontece
como
se
a separação
da
Igreja e
do
Estado não fosse necessá-
ria, a não ser
em
razão de
uma
intimidade mais antiga que
não
se
poderia ver. É a
uma
filosofia
da
religião
que
cabe ver
mais claro este
ponto.
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.----
--.-.------
22
i
Que
saber
sobre
Filosofia
da
Religião
A filosofia
da
religião pode ter vários sentidos.
Em
seu
sentido mais essencial que seguiremos aqui, ela pretende ser
uma
reflexão sobre o fato religioso, sobre seu sentido, suas ra-
zões, sem ignorar o genitivo subjetivo inerente
à ideia de
uma
"filosofia
da
religião", disposta a reconhecer à própria religião
uma
forma de filosofia
ou
de racionalidade, isto
é,
uma
via
que conduz à sabedoria. A disciplina
se
interessa então pe-
las grandes questões religiosas (o sentido do culto, Deus, a
fé,
a Igreja,
as
prescrições morais etc.) e
por
tudo
o que os
filósofos
puderam
dizer sobre essas questões. Trata-se de
um
campo imenso, porque todos
os
filósofos,
da
Antiguidade até
nossos dias, tiveram alguma coisa de
importante
a dizer sobre
a religião. Por conseguinte, o campo
da
filosofia da religião
coincide confirmando mais
ou
menos a própria filosofia.
Graças a Deus, a filosofia
da
religião pode ser entendida
em
um
sentido mais preciso. Ela pode:
1)
focalizar a atenção
em
uma
questão mais concisa (a essência
da
religião, Deus,
a imortalidade, mas esses são temas enormes); 2) ser com-
preendida como
uma
análise
ou
mesmo
como
uma
justifica-
ção dos fundamentos "filosóficos"
da
religião
em
geral (Ko-
lakowski, 16:
"O
que a tradição anglo-saxã chama filosofia
da
religião cobre
grosso
modo o domínio conhecido desde a
Idade Média sob o
nome
de teologia natural, a saber, o exame
racional de questões teológicas sem referência à autoridade
da
revelação"; era
também
a convicção de Hegel, 1996, 3),
ou
ainda de
uma
religião
em
particular (existe
também
uma
filosofia do judaísmo, do islã
ou
do budismo); 3) interessar-
-se
por
todas
as
religiões e
por
todas
as
formas do religio-
so, inclusive pelas formas de religiosidade contemporâneas,
mais
ou
menos explosivas, e que desconfiam naturalmente
das religiões oficiais
em
nome
de
uma
"espiritualidade" que
pretende ser mais autêntica.
1
•••••I
2.
O
vasto
campo
da
Filosofia
da
Religião
23
Todas
as
religiões
também
são demais. lembramos que
existem cerca de dez mil denominações,
no
momento
atual,
que possuem sem dúvida traços comuns, mas
uma
filoso-
fia
da
religião que quisesse abranger fenômenos tão diversos,
como
os
ritos funerários do neolítico, a mitologia asteca, o
hinduísmo (ele próprio plural) e os "novos movimentos reli-
giosos", deveria restringir-se a banalidades.
Aliás,
uma
filosofia
da
religião exclusivamente dedicada
a
uma
religião particular seria
muito
pouco, porque
ninguém
pode hoje fazer abstração
da
pluralidade do religioso. Aconte-
ce
que a maioria dos filósofos que
se
debruçaram sobre a reli-
gião o fizeram privilegiando
uma
religião particular,
na
maio-
ria das vezes a sua própria, porque eles conheciam
muito
mal
as
outras. Platão e Aristóteles
podiam
apenas pressupor
os
deuses de sua tradição, Agostinho não podia elaborar senão
uma
"doutrina cristã", enquanto autores como Maimônides
e Averróis tentavam conciliar a filosofia com suas próprias
confissões, respectivamente o judaísmo e o islã. É difícil fazer
filosofia
da
religião sem pressupor
uma
delas, mas que cor-
responderá a
uma
das inúmeras formas do religioso.
É forçoso confessar que isso
continua
silenciosamente
sendo verdade,
embora
a filosofia
da
religião não pretenda
mais tratar de
uma
religião particular e mostrar a mais to-
tal objetividade. Para dizê-lo sem rodeios: o cristianismo im-
primiu
de tal forma sua marca
na
filosofia e na reflexão sobre
o religioso que ele
continua
a determinar, quer
se
reconheça
ou
não
as
reflexões sobre a religião. Sem dúvida, ele mesmo
foi elaborado sobre
as
bases judaicas e gregas, e não sem inte-
grar elementos de cultos chamados pagãos, mas pode-se falar
aqui,
em
um
sentido que pretende ser o mais neutro possível,
de
um
domínio ou de
uma
ascendência
do
cristianismo sobre a
concepção do religioso.
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( --
24
Que
saber
sobre
Filosofia
da
Religião
Segundo esta representação tacitamente cristã, a religião
1)
depende
primeiro
da
pessoal; 2) essa religião, engastada
em
uma
metafísica, crê
em
um
Deus único, transcendente e
eterno; 3) traduz-se
por
um
culto definido; 4) promulga pre-
ceitos morais
(os
dez mandamentos, o sermão
da
montanha,
a
casuística);
5)
encarna-se
em
uma
instituição, quase política,
uma
"Igrejà', que
tem
sua hierarquia de clérigos, seus pasto-
res, seus rabinos
ou
seus xamãs, até mesmo seu chefe; 6) de-
fine-se
por
dogmas
ou
artigos de
fé;
7) supõe-se, enfim, que
esses dogmas são inspirados
por
textos sagrados, transmitidos
por
uma
revelação e sustentados
por
uma
tradição.
Nada
é mais fácil
do
que mostrar
que
essas característi-
cas não
se
encontram
em
todas
as
religiões, longe disso. Isto
não impede que
quem
se
interessar
por
essas outras formas
do
religioso busque nelas espontaneamente
uma
forma de
crença,
uma
concepção do divino,
um
rito,
uma
moral,
uma
hierarquia, certos dogmas e escrituras mais
ou
menos "sagra-
das" (que ainda
continuam
vagamente pressupostas
quando
se
trata de transmissão oral, de
memória
ou
de tradição, o
que será o caso
da
maioria das formas de religião que não
conheceram
ou
privilegiaram a escritura). O estudo empírico
das religiões nos adverte
prontamente
que algumas religiões
não conhecem verdadeiramente a noção de crença, que ou-
tras ignoram a ideia de
um
Deus transcendente,
ou
único, e
outras mais não
comportam
hierarquia,
nem
dogma,
nem
texto sagrado,
nem
preceitos morais obrigatórios. Além dis-
so, o esquema cristão não
continua
tão forte que
se
busca-
rá, nolens volens, nas outras "crenças" (termo que não é ino-
cente) equivalentes revelià' para o que o cristianismo nos
habituou
a encontrar
em
uma
religião. Isso
continua
sendo
verdade, mesmo
quando
o cristianismo é combatido
com
fe-
rocidade (tal religião será valorizada,
por
exemplo, porque ela
MMMMMNNNNNLゥェセMMMMセMMMMM
1
111
lllllm
2.
O
vasto
campo
da
Filosofia
da
Religião
25
não
comporta
moral rígida,
nem
dogmas,
nem
hierarquia).
Como
se
trata de
um
fato histórico, não é
uma
ascendência
que
se
deve
combater
a todo preço, cultivando
um
afeto an-
ticristão, aliás bem-difundido, mas que deve ser levado
em
consideração
no
quadro de
uma
filosofia da religião.
Con-
cretamente, desde sua imposição
como
religião
do
Império
Romano, o cristianismo
dominou
a reflexão filosófica sobre
a religião.
Os
únicos que conseguiram escapar foram os filó-
sofos muçulmanos,
como
Al-Farabi, Avicena e Averróis,
ou
Maimônides para o judaísmo, e os filósofos que
se
abriram
às
religiões orientais desde o Iluminismo, mas esses últimos
muitas vezes o fizeram para fugir
do
paradigma cristão.
No
entanto,
uma
filosofia
da
religião pode marcar os li-
セゥエ・ウ@
deste ascendente,
partindo
que os filósofos gregos
disseram
do
fenômeno religioso. E verdade que
uma
inter-
pretação da filosofia grega
da
religião continua,
nem
sempre
ウ・ュセ@
saber, tributária
do
horizonte cristão, mas 0
que
os gre-
gos
tmham
a dizer não o
é.
Há,
porém,
uma
outra
razão que
nos incitará a partir dos gregos:
se
ninguém
pode dizer
com
exatidão
quando
o fato religioso -
supondo
que ele existe
em
sua
セョゥ」ゥ、。、・@
-manifestou-se pela primeira vez, não
se
pode
duvidar, mesmo
se
isto for
às
vezes contestado, que a filosofia
nasceu no
mundo
grego.
Ora,
esta filosofia foi precedida e
se
tornou
possível
por
causa de
uma
"mitologia"
que
admitia
que a
ordem
do
mundo
estava assegurada
por
deuses sábios
e benevolentes. A ideia de
uma
ordem
do
mundo,
de
um
cosmos ao qual o
homem
deve conformar-se, foi
por
conse-
guinte prefigurada pela religião. É desta ideia de
uma
ordem
do
mundo
que a filosofia buscará explicar a razão.
Portanto, a reflexão filosófica sobre a religião é 0 reco-
nhecimento de
uma
dívida e de
uma
proveniência. A religião
precedeu o aparecimento da filosofia e
tornou
possível sua
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1111
..........................
セMセ@
....
MMセMMMMMMMM
( -
..
-
......
MMセセN@
26
Que
saber sobre
Fllosofta
da
Rellglio
busca de sabedoria, de racionalidade e de felicidade. Mas an-
tes de chegar aos gregos, importa determinar
as
dimensões da
essência
da religião e de sua universalidade. Porque a questão
filosófica fundamental de uma filosofia da religião é aquela
que procura compreender sua essência.
3.
A
essência
da
Religião:
um
culto
crente
oderíamos dizer da religião o que Plotino e Agos-
tinho disseram do tempo: como não nos pergun-
tamos para saber em que ela consiste, quase nada
sabemos sobre ela. Mas mesmo que nos façamos diretamente
a pergunta, não vamos saber tanto como poderíamos pen-
sar.
É que a religião pode ser tudo e seu contrário. Muitas
vezes
se
diz que
se
trata de um "sistema de crenças em uma
transcendência qualquer". Mas é fácil encontrar religiões que
não comportam sistema, nem transcendência, e que não
se
reconhecem expressamente como crença.
O fenômeno religioso admite formas tão variadas que
os
pesquisadores em ciências sociais das religiões
se
abstêm mui-
tas
vezes
de defini-lo. É verdade que a atmosfera do tempo,
nominalista, detesta rodo discurso que trata da
essência
das
coisas, como
se
fosse
um palavrão. Associa-se então, de ma-
neira caricatural, a essência a uma ideia um pouco platônica,
intemporal e de uma constância absoluta.
Se
uma coisa
que o estudo das religiões nos ensina, é exatamente que a
religião dificilmente corresponde a alguma coisa de idêntico
em rodas
as
civilizações. Isso é verdade, mas
se
falamos de
formas plurais do
religioso,
no singular, este deve correspon-
der exatamente a alguma coisa. Por
isso
a questão da
essência
da religião, longe de esquadrinhar
uma
ideia a priori, preten-
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' --- -
28
Que
saber
sobre
Filosofia
da
Religião
de responder a essa questão mais elementar: de
que
se
fala
quando
se
trata de religião? O que
se
mantém
no
fenômeno
religioso através de todas
as
suas metamorfoses? Se não
hou-
vesse
no
fenômeno religioso algo de
comum,
o
termo
religião
não teria
nenhum
sentido. E se esse algo não permanecesse
enigmático, ele simplesmente não interessaria à filosofia.
É que a filosofia
da
religião
pode
reconhecer sua ques-
tão principal: ela trata antes de
tudo
da
essência
da
religião,
a fim de
compreender
o
que
ela é, quais são seus elementos
e suas razões. Ela não
se
interessa
diretamente
pelos índices
de prática
em
uma
dada
sociedade (como
pode
fazê-lo
uma
sociologia
da
religião),
nem
por
uma
forma determinada,
po-
sitiva e confessional de crença (como o
faz
a teologia),
nem
pelas formas
imensamente
diversas
do
religioso (que
depen-
dem
da
antropologia e
da
ciência comparativa das religiões),
nem
pela
importância
cultural
ou
política
da
religião
em
nos-
sa civilização (que interessa a
uma
filosofia
da
cultura), mas
pelo
que
é,
fundamentalmente,
a religião,
por
conseguinte,
por
sua essência.
1.
Abordagens
funcionalistas
e
essencialistas
Geralmente
podemos
distinguir duas grandes aborda-
gens
da
religião, a funcionalista e a essencialista, mas
que
es-
tão longe de excluir-se.
A abordagem funcionalista
admite
que
a religião existe
porque
ela
cumpre
uma
função mais
ou
menos
evidente para
aquele
que
a pratica, mas transparente
para
aquele que a es-
tuda
do
exterior. Sua abordagem, fecunda
em
si, geralmente
é genealogista e causalista: a religião
se
explica a
partir
de
alguma coisa ou, segundo a fórmula consagrada, e mais crí-
••••••
3. A
essência
da
Religião:
um
culto
crente
1
29'
tica, "não é
nada
mais
do
que ... ".
Aqui
a religião não é con-
siderada
como
um
fenômeno
autônomo
ou
originário; ela
se
encontra
reconduzida a
outra
coisa
que
a razão
pode
explicar
melhor
e
que
ela
pode
penetrar.
A resposta à questão
da
função
ou
do
porquê
da
religião
é plural
em
si
mesma. Eis
uma
visão geral, não exaustiva,
dessas explicações funcionalistas,
que
comportam
todas elas
um
núcleo de verdade:
1)
A religião teria servido para explicar
os
fenômenos na-
turais
numa
época
em
que a ciência não existia, daí seu re-
curso a potências mágicas e demoníacas. A religião é vista
aqui
como
uma
pseudociência
ou
uma
forma de animismo,
extinto desde o advento
da
ciência moderna. Essa interpre-
tação funcionalista
da
religião encontra-se desde a Antigui-
dade
em
Epicuro e Lucrécio, mas é
uma
leitura que Augusto
Comte
(1798-1857)
popularizou
quando
distinguiu o está-
gio religioso (primitivo)
do
estágio positivista (científico)
da
humanidade.
Essa concepção
continua
forte
no
imaginário
popular, que acha
naturalmente
que
a religião foi
suplantada
pela ciência (mas nós vimos que a advertência dos próprios
cientistas sobre esta questão era mais atenuada).
2)
Uma
outra
explicação percebe
na
religião
uma
tenta-
tiva de explicar a obrigação moral: é preciso agir
moralmente
porque se trata de
um
mandamento
divino. A religião pro-
põe então
uma
justificação vertical
da
moral
que
permite
associar-lhe recompensas e penas: age-se moralmente,
por
exemplo, porque
se
espera
uma
bem-aventurança futura. O
fenômeno
religioso
se
explica aqui a
partir
do
sentimento
moral, considerado mais originário e mais autêntico
que
ele.
Nem
sempre ele é
dito
para desacreditar a religião: pensado-
res
como
Rousseau e
Kant
dirão
que
os
mandamentos
morais
podem
ser vistos
como
mandamentos
divinos, mas
que
sua
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30
Que
saber
sobre
Filosofia
da
Religião
origem é puramente moral. O selo divino vem conferir-lhes
uma dimensão de esperança, mas que seria mais ou menos
equivalente a uma mais-valia, acrescentada à moral.
3) Mais
ou
menos no mesmo filão, muitas
vezes
se
pres-
sente na religião uma tentativa de justificar
ou
de
explicar
uma
ordem
social
e política
ou
o papel que nela desempenham
os
governantes (faraós, reis),
os
sacerdotes
ou
uma casta par-
ticular. É uma filosofia da religião que
se
encontra tanto nos
manuscritos do jovem Marx e
na
Genealogia
da
moral (1887)
de Nietzsche, como no
Tratado
teológico-político
de Spinoza.
A religião, naturalmente considerada como o ópio do povo,
encontra-se aqui reduzida a
um
fenômeno sociológico, polí-
tico
ou
ideológico, considerado mais originário.
4)
Na
pista desta ideia de projeção e ilusão,
as
leituras
mais psicanalíticas veem facilmente na religião um fenômeno
de transferência (Deus funcionando como o pai que deve
proteger o filho que sempre continuamos sendo da incerteza
da
existência) que seria, segundo Freud (1927), o fato de uma
neurose coletiva e
um
pouco nardsica. A religião, criada por
nossos ancestrais, que eram mais ignorantes e miseráveis do
que nós para enfrentar o esmagador superpoder da natureza
e paliar nossa impotência
face
a ela, refere-se a
um
fenômeno
de sublimação, de repressão, numa palavra, a uma ilusão que
a ciência pode hoje penetrar, curando assim a humanidade
de sua própria neurose.
5)
uma última forma de explicação funcionalista cor-
rentemente aceita e que é pressuposta por Freud: ela julga que
a religião nasce antes de tudo da angústia diante da morte que
a consciência humana não poderia suportar. A religião seria
então o fato de uma cegueira voluntária
face
à finitude huma-
na e ao nada que a morte representa. Para ser difundida,
essa
forma de explicação pressupõe o horizonte do individualismo
•••••
3. A essência
da
Religião:
UID
culto
crente
31
moderno e a importância que
ele
atribuí à vida e à sobrevivên-
cia da pessoa humana. Mas não é certo que o individualismo
se
aplica a todas
as
formas de religião: algumas formas do budis-
mo exaltam sobretudo o desaparecimento
da
individualidade
na serenidade do nirvana, e parece que
as
formas mais antigas
do judaísmo, como muitas outras religiões, não conhecem a
ideia de uma sobrevivência após a morte.
2.
O
caráter
imemorial
do
religioso
As
explicações funcionalistas, todas elas, dizem alguma
coisa de importante para uma filosofia da religião: quem
po-
deria negar que
uma parte de consolação e projeção na
religião, que ela tem oferecido "explicações" das coisas que
não são defensáveis
ou
que ela muitas
vezes
foi
o reflexo de
uma constelação social
ou
ideológica? Encontram-se aqui
elementos de uma crítica à religião (embora nem todas
as
perspectivas funcionalistas sejam necessariamente críticas),
dos quais
se
pode pensar que podem ser apropriados pela
própria religião, a fortiori
por
uma filosofia da religião,
se
ela
quer chegar a
uma
melhor compreensão de seu objeto.
Não
se
poderia esquecer que a
crítica
da
religião
sempre
fez parte
da
própria
experiência
religiosa.
Isto é particularmen-
te evidente
na
linhagem formada pelas religiões do Livro, em
que cada uma
se
funda em uma crítica daquela que a prece-
de. A religião judaica estigmatiza o culto
aos
ídolos dos egíp-
cios e alguns cultos judeus infiéis
às
prescrições de Moisés
(o
bezerro de ouro e todas
as
imagens encontram-se proscritos
em nome da transcendência absoluta de Javé). O Novo
Tes-
tamento denuncia,
por
sua
vez,
a prática dos judeus, julgada
por demais legalista. O islã critica
as
aberrações da religião
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--
MMMMセM
.....
--
32
:
Que
saber
sobre
Fiiosofia
da
Religião
cristã, sua concepção da Trindade e a ideia de que Deus possa
ter um filho.
Quanto
ao protestantismo, ele nasce de
uma
crítica à versão esclerosada do catolicismo e passará também
por diversas reformas. Nada é mais religioso do que a críti-
ca da religião. Isso continua sendo verdade para
as
críticas
radicais à religião: nelas a religião não é condenada, a não
ser porque
se
tem uma concepção mais rigorosa da salvação
do que é lícito ao ser humano esperar. Pode-se tirar daí uma
lição importante para
uma
filosofia da religião: não
se
pode
criticar a religião, a não ser que
se
tenha
uma
outra coisa a
propor, uma religião melhor, talvez.
Também é permitido perguntar
se
a religião
serve de
fato para explicar
as
coisas e para cumprir uma função. Po-
deria ainda acontecer que a religião tivesse uma visão
um
pouco científica das coisas.
As
interpretações funcionalistas
pressupõem de fato que toda criação cultural deve corres-
ponder a uma função precisa.
Se
isso
não for certo, é que
uma
dimensão da religião que depende do "sempre aí".
efetivamente em quase todas
as
religiões
uma
tradição que é
perpetuada, mas
na
maioria das
vezes
de maneira não refle-
tida: a religião
se
exprime através dos costumes ancestrais,
dos ritos, dos relatos que são naturalmente retomados. Por
conseguinte, a religião não
foi
necessariamente inventada em
um
certo dia
por
espíritos malignos que queriam justificar
seu poder
ou
abusar da credulidade de suas ovelhas. Isto pode
sem dúvida ter acontecido em alguns casos: houve charlatães
e gurus que eram puros escroques (fenômeno que não
se
li-
mita ao
mundo
religioso). Mas em geral, a parte da tradição,
da
memória e dos costumes "sempre
aí", de maneira ime-
morial, demonstra seu poder na história das religiões. Aqui,
o indivíduo não
se
encontra na posição daquele que escolhe
no cardápio o que lhe convém
ou
o que corresponde a suas
3.
A
essência
da
Religião:
um
culto
crente
33
necessidades, mas
se
integra a um culto transmitido. É
isso
que
se
pode chamar "passado anterior" de toda religião, sua
anterioridade em relação à consciência.
Será que todas
as
religiões surgem exclusivamente da
necessidade de crer?
Se
é permitido duvidar disso é porque
as
religiões existiram bem antes que surgisse a questão do
porquê e de seu porquê, e bem antes sem dúvida que o crer
fosse reconhecido expressamente como tal. É o sentido da
anterioridade imemorial do religioso que
faz
parte de uma
realidade transmitida e que
se
insere
numa
tradição de me-
mória. Sem dúvida os seres humanos foram em todo tempo
"crédulos", e ainda o são, mas será que a religião depende
unicamente dessa credulidade? O judaísmo, como sabemos,
depende mais
da
pertença a
uma
linhagem e uma tradição
do que da
(o
que ainda assim é mais a norma do que a
exceção na história das religiões). Aqui, a parte de tradição é
mais importante do que a da
fé,
e a ideia de credulidade não
tem
nenhum
sentido.
Sobretudo nos damos conta de que
as
interpretações
funcionalistas resultam das interpretações essencialistas: di-
zer da religião que ela é apenas isto
ou
aquilo é exprimir-se
sobre sua essência, sobre o que ela é em seu fundo, que
se
pretende decifrar de uma
vez
por
todas. Portanto, ninguém
escapa de uma abordagem essencialista, de uma reflexão so-
bre o que constitui propriamente a religião, seja qual for sua
incomensurável diversidade.
3.
Os
dois
polos
da
religião
duas dimensões que parecem fundamentais e especí-
ficas
à religião: o culro e a crença.
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( -
----
-
34
Que
saber sobre
Filosofia
da
Religião
Isso também não é evidente, porque são dois aspectos
cujo peso relarivo é
às
vezes contesrado pelos especialistas.
É,
evidente que para
os
modernos a dimensão de culto pare-
ce
muitas
vezes
secundária (o único culto verdadeiro, dirão
Rousseau e Kant, é o do coração). A modernidade associa
facilmenre o culto e o riro a práticas
um
tanto
mágicas, cuja
verdadeira religião deveria cessar. Ela prefere reatar a religião
à noção de crença, pois
os
dois termos são quase intercam-
biáveis: haveria tanras religiões quantas crenças. Para ela, a
religião depende mais de uma crença
do
que de
um
culto. O
culto é visto como a consequência
da
crença (os que creem
em Moisés, Jesus
ou
Maomé obedecerão aos cultos instituí-
dos
por
eles ou aos que
se
valem deles).
Simplesmente, essa insistência na crença aparece bem
mais tarde na história das religiões.
Os
especialistas lembram
muitas vezes que
as
religiões mais antigas não teriam conhe-
cido essa dimensão de crença. Seria o caso das religiões grega
e romana, como insiste
P.
Gisel (2007, 54-55):
"Na
Antigui-
dade greco-romana, a questão do crer não é pertinente. Nes-
sa
época o religioso depende de
uma
relação com o cosmos,
feito de sabedoria e de medida, ligado à condição do
huma-
no. Narrações e mitos diversos, trazidos pelos poetas, relatam
essa relação
ou
a colocam
em
cena; eles contam o
mundo,
diversamente e
onde
nada é para crer. [ ... ]
Em
relação com
o cosmos, a religião antiga é essencialmente ritual.
ri-
tos a cumprir, acompanhados pelo mito.
Os
ritos devem ser
cumpridos em tal lugar,
por
cada um, seja ele estrangeiro
ou
esteja de passagem; sem este
cumprimento
a peste
ou
qual-
quer outra catástrofe cósmica pode sobrevir.
um
rito a
cumprir, sem engajamento crente nem retomada sobre si".
Gisel tem razão ao lembrar que a religião antiga era mais
ritual e cívica. Podemos enumerar práticas e formas de culto
ゥ{セセ󰜣ャャャヲャ@
3. A essência
da
Religião:
um
culto
crente
35
em quase todas
as
religiões antigas que balizam os grandes
ritos de passagem, o nascimento, o ingresso na comunidade,
o casamento) os ritos funerários, mas também os ciclos da
natureza (solstício, plenilúnio etc.). Esses cultos
cumprem
diversas tarefas, infinitamente variadas, de comemoração, de
pacificação e de comunhão, que se exprimem muitas vezes
por
sacrifícios de animais e
às
vezes de humanos. Esses ritos,
coletivos e participativos, administrados
por
autoridades re-
ligiosas, adivinhos, druidas, arúspices,
os
quais ocupam fre-
quentemente posições políticas, exercem uma função que
se
pode dizer propíciatória:
eles
têm
por
finalidade tornar pro-
pícios ou benevolentes os deuses
ou
as
forças
da
natureza.
Os
sacrifícios mais "expiatórios",
por
meio de um bode expiató-
rio
(cf.
Lv
16,22),
cumprem
uma
função análoga.
As
espiritualidades modernas, mesmo que não excluam
toda forma de culto, costumam ver de preferência
na
religião
uma questão de convicção pessoal (na qual
se
pode ver um
efeito do cristianismo e do acento que ele
faz
incidir na
fé).
Dependendo
do
engajamento, a religião
se
torna então uma
questão cada vez mais)
ou
até exclusivamente, privada.
Em
sua Carta sobre a tolerância, de 1689, Locke dirá que toda
religião é uma questão interior: "Toda a vida e o poder da
verdadeira religião residem na convicção plena e interior
do
espírito; e a
não é
sem crença''. Trata-se
de
uma
ideia
para nós bem banal, mas que para
um
pensador grego
ou
um
sacerdote quéchua seria totalmente incompreensível.
Se
podemos dizer que
as
religiões mais antigas estavam
mais centradas
no
rito,
as
formas mais recentes
de
religião
insistem mais na crença, na dinâmica do cristianismo. Mas
como ela é mais antiga, pode-se partir
da
ideia de culto e
reconhecer-lhe uma dimensão fundamental. Sem dúvida,
ela
se
tornou
um
pouco estranha para nós, mas sobrevive
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{
f
36
Que
saber
sobre
Filosofia
da
Religião
de
maneira
importante
na
ideia de
um
culto
da
alma
que
as
religiões
da
crença preservaram e até
aprofundaram.
A noção
de
culto
vem
do
verbo
colere,
que
quer
dizer cultivar.
Em
seu
sentido
mais agrícola, cultiva-se
um
terreno
para
torná-lo
fértil e,
no
caso
do
culto religioso, a fim de torná-lo fecundo
para
a divindade.
Todo
culto implica,
portanto,
mesmo
in-
conscientemente,
um
culto de
si
mesmo,
na
medida
em
que
0 homo
sapiens
que
toma
parte
em
um
rito o faz
em
certo es-
pírito, sabendo
ou
sentindo
(sapiens.0
que
se
trata de
um
cul-
to
que
tem
um
sentido. É neste sentido
que
a religião
pode
ser
chamada
um
culto
crente,
na
maioria das vezes
partilhado
por
uma
comunidade.
Aqui
se
pode
falar dos dois polos
do
culto
e
da
crença
para
sublinhar
que
o religioso
pode
tender
mais
para
um
do
que
para
o
outro:
a religião mais arcaica é
evidentemente
mais ritual,
enquanto
as
religiões
modernas
e conscientes
de
si
mesmas
como
religiões se
compreenderão
mais
como
crenças. Mas
um
polo
não
se
orienta
sem
o
outro:
assim
como
uma
crença
implica
um
engajamento,
certo
trabalho
sobre si,
portanto,
uma
forma
de
culto
ou
de
prática
que
pode
limitar-se a
uma
oração silenciosa,
uma
leitura
ou
um
olhar
sobre a vida, assim o
culto
que
não
precisa necessa-
riamente
se
refletir
como
crença
implica
certa
orientação
da
existência
em
certo sentido:
um
rito
é
cumprido
porque
ele é
sentido
-e,
consequentemente,
crido
-
como
algo
significante.
4.
Um
sentido
da
vida
traduzido
por
símbolos
Quer
dizer
que
o
culto
crente
que
é a religião
comporta
uma
dimensão simbólica. Ele
cumpre
ações e ritos cujo alcan-
3.
A
essência
da
Religião:
um
culto
crente
37
ce
ultrapassa os próprios gestos: sacrifica-se
uma
ovelha para
tornar
favoráveis os deuses,
como
se
batiza
uma
pessoa
com
água para lavá-la de seus pecados.
O
termo
símbolo vem do verbo grego sumballein,
que
quer
dizer "cair
junto";
ele exprime
uma
fusão entre o que é
dado
e o que
ele
significa (a água e a purificação). O
mundo
da
religião é de
súbito
um
mundo
simbólico, que quer dizer al-
guma
coisa
e
que
é desde
então
sensato, razoável. Esse alcance
simbólico,
ou
mais simplesmente significante, está,
de
uma
ou
de
outra
maneira, presente
no
espírito daquele
que
toma
parte
no
rito. Se alguém participa
em
uma
cerimônia
ou
pro-
cissão, é
porque
pressente
(sapiens)
que
ela
tem
um
sentido. É
aqui
que
intervém a dimensão
da
crença.
Mesmo
que
ela seja
pouco
confessada,
ou
até ausente,
pretendem-se
muitas
vezes
ritos das culturas mais arcaicas. se
pode
cumprir
um
rito
porque
se crê nele,
porque
se
crê
em
seu sentido,
que
confere
um
sentido
para
nosso
mundo.
Portanto,
em
sua essência, a
religião é
um
culto
crente,
no
qual a
dimensão
de
culto
ou
de
crença será mais
ou
menos
ostentada,
um
culto simbólico
que
reconhece
um
sentido
a nosso cosmos e
por
conseguinte
a nossa existência.
O
nominalismo
na
função simbólica
uma
atividade
construtiva de nosso espírito,
uma
simples projeção de nossa
inteligência, acrescentada à experiência de
um
mundo
antes
de
tudo
físico. A religião nos
lembra
de
que
isso
não
é
com-
pletamente
verdadeiro, visto
que
o
mundo
está cheio de
sinais
que
apontam
para
além
do
que
é
imediatamente
dado:
a
nuvem
carregada é
anúncio
da
tempestade (ou
da
cólera do
deus ... ), o rosto pálido é o
sintoma
de
uma
doença, o
bom
odor
deixa adivinhar alguma coisa comestível
ou
um
parceiro
interessante. O real é de repente significante, o sentido não é
uma
pura
criação de nosso cérebro.
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38
Que
saber
sobre
Filosofia
da
Religião
Como
bem
o viu Ricoeur, é
no
próprio
mundo
que
o ser
humano
faz a experiência do sentido e
também
do
sagrado:
antes de
tudo
no
mundo,
nos
elementos
ou
aspectos
do
mundo,
no
céu,
no
sol e
na
lua, nas águas e
na
vegetação
que
o
homem
o sagrado; [ ... ]
portanto,
antes de
tudo
é o sol, a
lua,
as
águas, isto é, realidades cósmicas,
que
são símbolos" .1
Mesmo
sem refleti-la sempre
como
tal, a religião é a ex-
pressão dessa dimensão simbólica
do
real e da vida: o real é
mais
do
que ele
a perceber à primeira vista. Ele
tem
um
sentido. A articulação desse sentido nos cultos e nas crenças é
a religião. Esta articulação
tem
algo de universal.
5.
A
universalidade
da
religião
1)
A universalidade
da
religião significa antes de
tudo
dizer que houve religiões em toda parte,
em
quase todas
as
civilizações e
em
todo tempo. Hegel chega a dizer
da
religião
que ela é o
que
o ser
humano
e
as
civilizações
têm
de mais
próprio
e de mais precioso,
porque
é,
como
o
testemunham
muitas vezes suas obras de arte
ou
o que consideramos hoje
como
suas obras de arte, sua realização mais elevada e a fonte
de sua
maior
felicidade. Isso o
faz
dizer
que
a religião é de
certo
modo
o
"domingo
da
vida" (1996, 58), a quintessên-
cia de
uma
vida que
se
reflete a
si
mesma.
De
fato, ela é o
que nós mais retemos e admiramos nas culturas antigas
ou
estrangeiras.
2) A universalidade
da
religião nos
faz
lembrar a varie-
dade infinita dos cultos e das religiões. Ela
tem
a chance de
nos prevenir
contra
as
ideias preconcebidas a propósito
da
religião que a associam tão
pronta
ou
tão
comodamente
a
1
P.
R1coEUR,
Philosophie de
la
volonté, li: Finitude
et
cu/pabilité, Aubier, 1988, 174.
3.
A
essência
da
Religião:
um
cuHo
crente
39
uma
forma particular
da
religião,
como
se
faz
muitas vezes,
quer
se
trate
do
integrismo
muçulmano
ou
do
jansenismo
católico. Será que é verdade dizer
que
todas
as
religiões são
hostis à sensibilidade, à mulher,
que
elas sejam votadas a
uma
alienante transcendência metafísica? A universalidade da re-
ligião nos
lembra
de que isso está longe de ser evidente.
religiões que veneram realidades naturais,
como
o sol e os
animais, que não
têm
nada
de metafísico. Algumas quase não
falam de Deus
ou
de
um
Deus transcendente, outras estão
mais associadas a etnias. Mas,
em
todas elas, a filosofia
pode
pressentir
um
culto crente que se traduz
por
símbolos que
reconhecem
um
sentido para nosso universo.
3) Dessa maneira, a universalidade da religião vem subli-
nhar
que
nenhum
ser
humano
existe verdadeiramente sem
alguma forma de religião, isto é, sem alguma orientação fun-
damental a respeito de sua existência,
por
embrionária
que
ela seja. Alguns vão preferir
chamar
isso de espiritualidade,
visão do
mundo
ou
filosofia de vida. Aqui cabe lembrar a
fórmula de Agostinho, segundo a qual cada
um
é
uma
per-
gunta,
um
problema
para
si
mesmo;
ou
a de Heidegger, para
quem
o
homem
é o ser que trata
em
seu ser de
si
mesmo. Essa
preocupação
traduz
uma
inquietação a propósito
do
sentido
da vida, o que
as
religiões
procuram
articular.
Uma
visão não
religiosa
do
mundo
buscará a sua maneira o equivalente a
esse sentido.
4) A universalidade da religião vem, enfim, sublinhar a
ideia de que a religião
propõe
uma
salvação
que
pretende,
em
princípio, ser universal. A religião, e a utopia que a anima,
encontra-se à origem de nossa
própria
concepção da univer-
salidade. É incontestável que o universalismo dos direitos
humanos
tem
tudo
a ver
com
a universalidade da salvação
proclamada
por
São Paulo na Epístola
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DIRETOR EDITORIAL: COPIDESOUE: 
Marcelo C Araujo Lessandra Muniz de Carvalho 
EDITOR: REVISÃO: 
Márcio Fabri dos Anjos Leila Cristina Dinis Fernandes 
TRADUÇÃO: DIAGRAMAÇÃO: 
Lúcia Mathilde Endlich Orth Junior Santos 
COORDENAÇÃO EDITORIAL: CAPA: 
Ana Lúcia de Castro Leite Alfredo Castillo 
Titulo original: La phi/osophie de la religion 
© Presses Universitaires de France. 2009 
EDITORA iiíi IDÉIAS.· 
'tLETRAS 
Editora Idéias & Letras 
Rua Pe Claro Monteiro. 342 - Centro 
12570-000 Aparecida-SP 
Tel. (12) 3104-2000 - Fax (12) 3104 2036 
Televendas: 0800 16 00 04 
vendas@1deiaseletras.com.br 
http//www.ideiaseletras.com. br 
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) 
Grondin, Jean 
Que saber sobre Filosofia da Religião/ Jean Grondin; [tradução Lúcia Mathilde Endlich 
Orth]. - Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2012. 
12-03293 
Titulo original La philosophie de la religion 
Bibliografia. 
ISBN 978-85-7698-132-9 
1. Religião - Filosofia 1. Título. 
índices para catálogo sistemático: 
1. Filosofia da religião 210.1 
CDD-210.1 
1 
Sumário 
Introdução - Religião e sentido da vida ................................... 7 
1 - Religião e Ciência Moderna ............................................. 11 
1. O nominalismo do mundo contemporâneo .................... 13 
2. A religião foi ultrapassada pela ciência moderna? ............ 17 
2 - O vasto campo da Filosofia da Religião ......................... .. 21 
3 -A essência da Religião: um culto crente ........................... 27 
1. Abordagens funcionalistas e essencialistas ........................ 28 
2. O caráter imemorial do religioso ..................................... 31 
3. Os dois polos da religião ................................................. 33 
4. Um sentido da vida traduzido por símbolos .................... 36 
5. A universalidade da religião ............................................ 38 
4- O mundo grego ................................................................. 41 
1 A " 1· ·- " 41 
. re 1g1ao grega ........................................................... . 
2. Os filósofos pré-socráticos e a religião ............................ .44 
3. Platão: uma religião que se tornou metafísica ................. .46 
4. A fundação platônica da metafísica ................................ .48 
5. A crítica da tradição mítica: a agatonização do divino ..... 52 
6. Platão e a religião da cidade ............................................ 54 
7. Aristóteles: a racionalização do divino 
e da tradição mítica ......................................................... 59 
8. A metafísica do espírito ................................................... 60 
l 
fJ 
· l · - d A · ' l 62 9. A desmlto og1zaçao e nstote es .............................. · · · · · 
10. O impulso da filosofia da religião no helenismo ........... 64 
S - O mundo latino ................................................................ 67 
1. A religião, uma palavra latina .......................................... 67 
2. A religião segundo Cícero: a reler atentamente ................ 68 
3. O laço religioso segundo Lactâncio ................................. 74 
4. A síntese do platonismo e do cristianismo 
em Agostinho ................................................................. 75 
6 - O mundo medieval ........................................................... 81 
1. Duas fontes do saber. ...................................................... 81 
2. A filosofia da religião de Averróis e de Maimônides ......... 83 
3. A virtude de religião segundo Tomás de Aquino ............. 88 
7-0 mundo moderno ........................................................... 93 
· ' · ' B'bl. 96 1. Spmoza e a cnnca a 1 1a ................................ ·· ·· ·· ·· · · · · · · 
2. A religião moral de Kant.. ............................................... 99 
3. A intuição do infinito em Schleiermacher ..................... 104 
4. A sistematização filosófica da religião 
em Schelling e Hegel.. ................................................ ·· .107 
5. As críticas da religião após Hegel .................................. 109 
6. Heidegger e a possibilidade do sagrado ......................... 114 
Conclusão ................................................... · · · · ·· · · ·· ·· ·· ·· · · · · ·· · · · .119 
B1
.bl1ºografia ........................... · ... · · · · · · · .12 5 
···································· 
Introdução 
Religião e sentido da vida 
religião oferece as respostas mais sólidas, mais an-
tigas e mais fidedignas à questão do sentido da 
vida. Por isso ela não pode deixar de interessar à fi-
losofia em sua própria busca de sabedoria. O objeto supremo 
da maioria das religiões, Deus, representa, por sua vez, uma 
das melhores respostas à questão filosófica de saber por que 
há o ser e não o nada. A outra resposta consistiria em afirmar 
que o ser nasceu do acaso. É na religião que se articulou, e de 
maneira infinitamente diversa, uma experiência da vida que 
reconhece nela um percurso que tem sentido, porque esta 
vida se inscreve num conjunto que comporta uma direção, 
um fim e uma origem. Esta direção e esta origem podem ser 
determinadas por potências naturais ou sobrenaturais, por 
uma história que se pode hoje qualificar de mítica, mas cada 
vez a vida se reconhece comandada por algo superior que ha-
bitualmente é o objeto de uma veneração, de um culto e de 
um reconhecimento, sejam quais forem. Aí está uma resposta 
à questão do sentido da existência, que sempre apaixonou, 
mas às vezes também atormentou, a filosofia, de Platão até 
Bergson, Heidegger e Lévinas. 
8 Que saber sobre Filosofia da Religião 
Só existem três respostas possíveis à difícil, mas gritante, 
questão do sentido da existência: 
1. As respostas religiosas ou espirituais no sentido amplo, 
aquelas que reconhecem, de maneira natural ou refletida, que 
a existência está religada (religare, é uma das etimologias anti-
gas que foi proposta para o termo religião, não importa se ela 
é fantasista) a alguma potência superior; não é falso dizer que 
essas respostas prevaleceram na história da humanidade, em 
quase todas as suas culturas e em todas as suas épocas. 
2. As respostas seculares mais recentes. Elas nem sempre 
contestam a existência de uma transcendência, mas apostam 
mais na felicidade ou bem-estar dos seres humanos. Existem 
duas grandes variantes dessas respostas: uma forma mais uto-
pista e humanista e uma versão mais hedonista e individual. 
A resposta humanista à questão do sentido da existência as-
pira à melhoria da condição humana. Ela pretende reduzir o 
sofrimento e lutar contra a injustiça, porque supõe que a vida 
humana representa um fim em si e que sua dignidade merece 
ser defendida. São respostas completamente honráveis que 
compõem a "religião" mais ou menos declarada de nossas 
sociedades avançadas, mas todas elas pressupõem as respos-
tas religiosas, às quais elas fazem empréstimos importantes 
quando falam da dignidade humana ou da injustiça que é 
preciso combater, mas também quando sonham com uma 
libertação futura. 
As respostas mais hedonistas proclamam por sua vez que 
é preciso gozar esta vida, porque ela é a única que nos é dada. 
É evidente que a resposta religiosa, ou mais exatamente sua 
ausência, encontra-se aqui pressuposta: é porque não há ho-
rizonte superior, nem transcendência, que é preciso aprovei-
tar plenamente nossa vida. Neste caso é o prazer ou o gozo 
imediato que deve ser a fonte de nossa felicidade. Agostinho 
Introdução 9 
teve razão quando assinalou que também aqui se tratava de 
religião (A fé cristã, 1.38.69): aqueles que rejeitam os bens 
intemporais veneram de fato as coisas temporais, porque é 
delas que eles esperam a beatitude.Isto nem sempre será ad-
mitido, mas há realmente neste caso uma forma de "religião", 
isto é, um culto e uma crença em alguma coisa que nos torna 
felizes. 
3. Enfim, podemos encontrar "respostas" à questão do 
sentido da vida que consistem em dizer que a vida não tem 
sentido (ou que a própria questão está malcolocada). Mais 
uma vez, se achamos que a vida não tem sentido ou que ela 
é absurda, contestamos que ela tenha um sentido religioso ou 
transcendente, realmente digno de fé e verificável. Resposta 
desiludida, lúcida por alguns lados, porque ela apreendeu a 
plena dimensão do mal e do incompreensível sofrimento da 
existência, mas que não responde verdadeiramente à questão: 
por que vivemos? 
Quanto aos que julgam que a questão está malcolocada, 
é preciso perguntar-lhes como conviria colocá-la. A questão 
pode certamente ser expressa de outra forma, mas concebe-
mos mal uma existência de homo sapiens, isto é, de um ser 
vivo consciente de sua condição, que não se coloca, seja lá em 
que grau for, questões sobre o sentido de sua breve estadia no 
tempo, mesmo que essas questões devam continuar abertas 
(e elas permanecerão abertas, mais ainda para a filosofia do 
que para a religião). É neste sentido que Agostinho dizia do 
ser humano, no começo de suas Confissões, que ele é um enig-
ma para si mesmo. A filosofia é um fervilhar desse enigma, 
sem ignorar que a religião pretende trazer-lhe uma resposta. 
A tarefa de uma filosofia da religião é meditar sobre o 
sentido dessa resposta e o lugar que ela pode ter na existência 
humana, ao mesmo tempo individual e coletiva. A filosofia 
\ 
, 
_} 
1 o ! Que saber sobre Filosofia da Rellglão 
da religião pretende por conseguinte ser uma reflexão sobre 
a religião, sobre sua essência e suas razões, e até sobre sua 
sem-razão. Mas o duplo sentido do genitivo, ou do comple-
mento nominal, na ideia de uma "filosofia da religião" dá 
aqui a pensar, no sentido em que o genitivo no "medo dos 
inimigos" (metus hostíum) pode exprimir ao mesmo tempo o 
medo que temos dos inimigos (genitivo objetivo) e o medo 
que os inimigos têm de nós (genitivo subjetivo). O propósito 
de uma filosofia da religião não é somente refletir, a distância, 
sobre um objeto particular, como se faz numa filosofia da 
cultura, da arte, do direito ou da linguagem. O genitivo sub-
jetivo pretende também ser tomado em conta: talvez haja al-
guma coisa semelhante a uma filosofia que pertence à própria 
religião, uma via da sabedoria, se quisermos, que a filosofia, 
em sua própria busca de sabedoria (é o sentido da palavra 
philo-sophia), não poderia desdenhar e da qual ela tem coisas 
a aprender: e se houver mais sabedoria na religião do que na 
própria filosofia? 
> E 
-
1. Religião e Ciência Moderna .. 
e a filosofia reconhece de boa vontade que a reli-
gião oferece as respostas mais eficazes à questão do 
sentido da existência, ela também sabe que essas 
respostas perderam hoje sua evidência. Não por toda a parte, 
longe disso, porque nossa época também é a época de uma 
ressurgência do religioso sob diversas formas, apesar do prog-
nóstico, falso, de seu próximo desaparecimento: forte cresci-
mento dos fundamentalismos, midiatização dos papas e das 
grandes figuras religiosas, proliferação das espiritualidades 
ecléticas, retorno à religião nos países do Leste (mas também 
na China) outrora ateus, persistência das questões últimas e 
da crença nas sociedades avançadas (numa pesquisa feita em 
2008, 92% dos americanos diziam crer em Deus). 
Se dizemos da religião que ela perdeu sua evidência, é por-
que a medimos com parâmetros de um saber experimental e 
científico, aquele que se impôs como a via privilegiada, quan-
do não exclusiva, da verdade, nos tempos modernos, que ela 
não pode realmente satisfazer, pois suas origens são muito mais 
amigas do que a ciência. A religião comporta elementos de fé, 
de tradição, de rito, parece fortemente ditada por necessidades 
subjetivas e remeter ao inverificável, outros tantos elementos 
que minam sua credibilidade aos olhos da ciência moderna. 
Ao mesmo tempo em que permanece muito forte, força que 
1 1 
12 Que saber sobre Filosofia da Religião 
faz parte de seu mistério, a religião se tornou uma questão cada 
vez mais problemática aos olhos da filosofia. 
A consciência histórica dos dois últimos séculos, com o ine-
gável impulso de relativismo que ela pressupõe, atingiu a muitos: 
jamais se teve tanta consciência do grande número de religiões 
(podemos contar mais de dez mil denominações no momento 
atual) e da diversidade de suas origens culturais e históricas. Isso 
tem por efeito relativizar a própria mensagem religiosa: como se 
pode afirmar que uma única religião encarna a via privilegiada 
da salvação? As religiões que o fazem, aquelas que insistem na 
unicidade e no caráter sobrenatural da revelação na qual se auto-
rizam, como as convida sua tradição, correm o risco de aparecer 
como crispações e reações um pouco desesperadas a essa relativi-
zação histórica, aliás dificilmente contestável. 
É verdade que se fala muito, mas há pouco tempo, da "expe-
riência religiosà', e justamente em razão da ascendência exercida 
pelo modelo científico, mas a ciência tende a ver nisso uma for-
ma ftaca de saber que depende da simples crença ou da "apostà' 
para falar como Pascal. Mas falar de "apostà' é ainda pressupor 
um modelo matemático caro à ciência moderna, o do cálculo 
das probabilidades, como também o sabia Pascal: em vista da 
eternidade que nos espera e da duração tão irrisoriamente curta 
de nossa vida, é melhor assumir o risco da fé, que tem o mé-
rito de oferecer um reconforto aqui e agora, prometendo-nos 
ao mesmo tempo uma bem-aventurança eterna, sem nenhum 
parâmetro com o que se pode esperar nesta vida: "Assim, nossa 
proposta está numa força infinita, quando há o finito a arriscar 
[ ... ] e o infinito a ganhar" (Pensées, Brunchvicg, 233). Continua 
aqui pressuposto o quadro da ciência moderna com suas exigên-
cias de cálculo e rentabilidade. Aqui a religião é considerada, até 
certo ponto, à maneira de uma "hipótese" (científica), adorada 
por alguns, porque ela responde a suas necessidades mais ou me-
1111111111111111111111111111 1. Religião e Ciência Moderna 13 
nos confessadas, mas que outros rejeitam porque ela não satisfaz, 
justamente, às normas da ciência. A religião aparece, portanto, 
como uma questão privada ou subjetiva, dependendo dos gos-
tos ou das apostas de cada um. O conhecimento "objetivo" da 
realidade depende só da ciência. 
1. O nominalismo do mundo contemporâneo 
O horizonte de pensamento, bem recente, que vê na re-
ligião uma construção cultural que se acrescenta a uma rea-
lidade, que só a ciência física seria capaz de conhecer, é o do 
nominalismo. Este é uma resposta à questão de saber o que 
existe realmente: "existir" para ele é ser, ao invés de não ser, 
isto é, sobrevir realmente no espaço, existência que se deixa 
comprovar por nossos sentidos e nossos instrumentos de me-
dida. Esta mesa ou este livro existem, por exemplo, porque 
eu os vejo diante de mim. Nem sempre se sabe, mas essa é 
uma concepção relativamente recente da existência, concepção 
que é própria ao nominalismo. Para ele só existem realidades 
individuais, materiais, portanto perceptíveis no espaço e no 
tempo. Assim, para o nominalismo, as mesas e as maçãs exis-
tem, mas os unicórnios, os anjos ou o Papai Noel não existem, 
são apenas ficção. As noções universais não existem também, 
são apenas nomes (nomina, daí sua denominação) que servem 
para designar um conjunto de indivíduos que possuem esta 
ou aquela característica comum, individualmente observável. 1 
Esta é urna visão tão evidente das coisas e que determina de 
modo tão decisivo nosso pensamento que todos nós esquece-
mos que se trata de urna concepção bem-particular da existên-'C: PANAcc10, "La question du nominalisme", em A. JACOB, Encyclopédiephi/osophique 
unrverse/le. PUF, t. 1, 1989, 566. 
---·---"> ............... _ -·--
1 
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= 
______ _.... ......................... 1111111 ... ..... 
14 Que saber sobre Filosofia da Religião 
eia, isto é, a concepção que concede a prioridade exclusiva do 
ser à existência individual e contingente. 
Existe pelo menos uma outra concepção do ser que é 
mais antiga e contra a qual a concepção nominalista foi pa-
cientemente elaborada. À vista da concepção moderna e no-
minalista, é uma concepção que parecerá bizarra na medida 
do possível, a fortiori à nossa época, a do nominalismo sem 
reserva. É a concepção que compreende o ser não como exis-
tência individual, mas como manifestação da essência, cuja 
evidência seria primeira. Isso nos parece incongruente, por-
que, para nós, a essência é segunda, ela se acrescenta, por 
abstração, à existência individual. Ora, essa concepção era a 
dos gregos, especialmente de Platão, para quem o individual 
possui uma realidade de segundo grau. Ele é efetivamente se-
gundo em relação à evidência mais ofuscante da essência (ou 
da espécie, porque se trata do mesmo termo em grego: eidos) 
que ele representa: assim, por exemplo, um ser humano ou 
uma coisa bela é apenas uma manifestação (bem efêmera!) de 
uma essência ou de uma espécie. A essência, como seu nome 
indica exatamente (esse), encerra o ser mais pleno, porque o 
mais permanente. 
Não obstante, essa concepção que nos parece tão insólita 
sustentou o pensamento ocidental até o fim da Idade Média. 
Ela começou a ser criticada pelos autores que foram chama-
dos nominalistas, entre os quais Guilherme de Ockham (fim 
do século XIII 1350). Ironicamente, a motivação dele era 
inicialmente teológica: é que ele achava que a onipotência de 
Deus, da qual a Idade Média tardia tinha uma viva consciên-
cia, parecia incompatível com uma ordem eterna de essências 
que viria de alguma forma limitá-la. Se Deus é rodo-poderoso, 
ele pode a todo momento transtornar a ordem das essências, 
agir de modo que o ser humano possa voar ou que os limoei-
••••••••• 1. Religião e Ciência Moderna 15 
ros produzam maçãs. Para Ockham, as essências são, portanto, 
apenas nomes e sucumbem a sua proverbial navalha. 
Essa concepção foi contestada em sua época (entre ou-
tros motivos porque ela parecia incompatível com o dogma 
da eucaristia, em que a transformação da essência é crucial), 
mas ela acabou, lentamente, mas com certeza, por triunfar 
na modernidade, a ponto de eclipsar totalmente a outra 
visão da existência. Dessa forma não existem mais para a 
modernidade senão entidades individuais e materiais. Co-
nhecer essas realidades não é mais conhecer uma essência, 
mas referenciar regularidades ou leis no seio das realidades 
individuais, supostas como primeiras. Essa concepção da 
existência penetra de lado a lado a ciência da modernidade, 
e não é de surpreender que ela tenha dominado seu pensa-
mento que se pode dizer "político", no qual a preeminência 
do indivíduo se impõe cada vez mais como a única realida-
de fundamental. 
Este nominalismo vai de par com a atenção que a ciência 
moderna presta ao que é imediatamente constatável. Os con-
ceitos e as ideias que interessavam à ciência tradicional, todos 
eles, tornaram-se duvidosos e segundos. Mesmo as ciências 
humanas que se tornaram "sociais" na esteira desse processo, 
precisam de positividades individuais e espacialmente obser-
váveis. É que as ideias não são mais manifestações do ser, mas 
fatos da sociedade, dos quais se imagina poderem ser objeto 
de uma observação empírica. Calcamos aqui sobre as ciências 
humanas uma concepção do ser que, com roda a certeza, foi 
tomada das ciências da realidade física (à qual se reduz daí 
em diante todo ser). 
É evidente que esse nominalismo é averiguado como 
particularmente ruinoso para a própria religião e sua justa 
compreensão. É uma parvalhice dizer que as realidades da 
1 
{ 
16 Que saber sobre Filosofia da Religião 
religião - a existência do divino, por exemplo - devem criar 
problema num quadro nominalista: Deus existe como uma 
maçã ou uma formiga? Certamente não. Portanto, Deus não 
existe para certa modernidade ou só existe a título de supers-
tição inventada pelo cérebro humano. 
A concepção que fazia do ser uma manifestação da essên-
cia, por estranha que possa parecer, não tinha essas dificulda-
des, porque para ela a existência individual e contingente era 
sempre derivada. Portanto, a existência do divino não criava 
problema para ela mesma, porque era primeira. Quanto à fé, 
ela era não tanto a questão de uma opção pessoal do indiví-
duo, mas um manter-se na evidência da essência divina, um 
saber-se envolvido por sua fidelidade que nada tinha a ver 
com uma opção que seria primeiramente a nossa. 
Uma filosofia da religião não pode ignorar este hori-
zonte nominalista, o da ciência moderna, que faz da reli-
gião uma questão tão problemática. Mas ela também sabe 
que a religião é mais antiga que a ciência (cuja emergência 
ela favoreceu entre os gregos ensinando que o mundo for-
mava um cosmos ordenado) e que aquela se articulou desde 
então independentemente desta. Ela também não ignora 
que essas formas, digamos arcaicas, do religioso sobrevivem 
muito bem à era da ciência, enquanto que outras formas de 
saber, de experiência ou de fé que se pode dizer pré-científi-
cas não sobreviveram: elas subsistem talvez aqui ou lá, mas 
práticas como a astrologia ou alquimia quase desaparece-
ram. A modernidade pensou durante muito tempo, e ainda 
pensa, às vezes, que a mesma sorte seria a da religião. Mas 
isso não aconteceu. A religião continua sendo uma forma 
bem-viva e poderosa da existência humana. Essa surpreen-
dente vitalidade do religioso no mundo contemporâneo, 
onde os grandes líderes morais - de Gandhi a João Paulo 
n\llllllllllllllllllllll 1. Religião e Ciência Moderna 17 
II, passando por Martin Luther King, Elias Wiesel, Oscar 
Romero, Dalai Lama, Madre Teresa e Abbé Pierre - são 
muitas vezes personalidades religiosas, dá a pensar. Como 
explicar esta força do religioso que a atualidade parece não 
desmentir, muito ao contrário? Pode-se dizer, pelo menos, 
que ela testemunha uma experiência da vida que excede o 
quadro restrito do nominalismo. 
Existe uma questão à sombra da qual se mantém hoje 
toda filosofia da religião. 
2. A religião foi ultrapassada pela 
ciência moderna? 
É evidente que a ciência tratou mal diversas representa-
ções religiosas do mundo: o mundo não foi criado em seis 
dias (mas numa ínfima fração de segundo), o homo sapiens 
descende de fato do macaco, do qual ele é próximo genetica-
mente, e Galileu tinha razão. Também é incontestável que 0 
agnosticismo, talvez até o ateísmo, do mundo moderno está 
profundamente marcado pela concepção científica do mun-
do, para a qual a religião representa apenas uma forma de 
superstição, e a humanidade ganharia se prescindisse dela. 
Não há, porém, nenhuma dúvida de que as religiões se 
mantiveram no mundo moderno "apesar de tudo". Em nome 
da ciência moderna, a religião foi habitualmente proclama-
da morta, antiquada, ilusória e até perigosa pelos filósofos, e 
ainda o é, de tempos em tempos, por autores recentes. Cada 
um é livre para ver nela a sobrevivência de uma credulidade 
supersticiosa, mas a persistência do religioso no mundo mo-
derno é um fato. São sobretudo as ideologias que quiseram 
suplantá-la, entre as quais o marxismo, e que rapidamente 
1 
I 
18 Que saber sobre Filosofia da Religião 
envelheceram. Também Hegel (1996, 145), será que ele não 
tem razão ao dizer que é preciso pensar duas vezes quando 
se quer opor sua própria autoridade à autoridade da religião, 
porque isto seria opor-se a uma autoridade universalmente 
reconhecida? 
Pode-se tambémapelar para o testemunho dos próprios 
cientistas em nome dos quais se pretende falar. Evocaremos 
aqui apenas o caso de Albert Einstein, de um lado, porque ele 
é bem-conhecido e, de outro, porque ele foi um dos maiores 
gênios da história da humanidade. O Time fez dele recente-
mente a pessoa mais influente do século XX e até do segundo 
milênio, e com razão. Em um outro texto muito célebre e, 
claro, muito pouco conhecido, ele disse: ''Afirmo que o sen-
timento religioso cósmico é o motivo mais forte e mais nobre 
da pesquisa científicà'. 2 Texto desconcertante para alguns, 
mas que não é da pena de um cientista qualquer, nem do 
ser mais piedoso do mundo (Einstein era judeu, mas quase 
não era praticante, ou não o era absolutamente). Ele explicou 
mais tarde o sentido desse sentimento religioso cósmico: "Se 
existe algo em mim que se possa chamar 'religioso', isto seria 
minha admiração sem limites pelas estruturas do universo, 
na medida em que nossa ciência possa revelá-las". 
Esta convicção de que há no mundo uma "razão supe-
rior revelando-se no mundo da experiêncià' traduz para ele a 
"ideia de Deus". Em seu ensaio de 1934, Como vejo o mun-
do, ele não hesitava em afirmar que "a ciência sem religião é 
defeituosa, e a religião sem ciência é cegà'. Mas o Deus de 
Einstein não é um Deus que se interessa muito pela sorte dos 
humanos: "Creio no Deus de Spinoza, que se revela na ordem 
harmoniosa do que existe, e não em um Deus que se preocu-
2 A. EINSTEIN, Comment je vais te monde, 1979, 19. 
r 
•••••••••• 1. Religião e Ciência Moderna 19 
pa com a sorte e as ações dos seres humanos" (telegrama en-
dereçado ao rabino Goldstein, em 1929). Einstein explicava 
por que em seu livro de 1934: "Eu não posso imaginar um 
Deus que recompensa e pune o objeto de sua criação. Não 
posso representar-me um Deus que pautaria sua vida na ex-
periência da minha. Não quero e não posso conceber um ser 
que sobreviveria à morte de seu corpo. Se ideias semelhantes 
se desenvolvem em um espírito, eu o julgo fraco, temeroso e 
estupidamente egoístà'. 
O interesse desse testemunho é lembrar que não é abso-
lutamente justo afirmar que a religião teria sido construída 
em prejuízo da ciência moderna (mesmo que Einstein, por 
outro lado, criticasse a fraqueza e a credulidade da maioria 
das crenças religiosas). Pode-se também lembrar que aquele 
que formulou a hipótese de um big-bang era um padre cató-
lico, Georges Lemaitre (1894-1966), mesmo que lhe tenha 
dado um outro nome. Esta ideia de uma expansão crescente 
do universo, desde sua repentina explosão, transformou-se 
em irrisão pelo astrônomo Fred Hoyle (1915-2001), que ha-
via declarado que não acreditava nesta teoria ridícula de um 
big-bang, segundo a qual o universo teria começado por uma 
grande explosão. A expressão pretendia ser irônica, mas aca-
bou sendo aceita pela comunidade científica. 
Não vamos entrar aqui em um debate com as ideias de 
Einstein ou de Lemaitre, mas nem deixar também de lem-
brar que muitos dos melhores cientistas estão longe de ex-
cluir toda perspectiva religiosa. Mas também nos parece im-
portante sublinhar que eles não o faziam como cientistas, isto 
é, apoiando-se em resultados de pesquisa rigorosa. Quando 
Einstein fala do sentimento religioso cósmico, ele o faz como 
filósofo. Ele faz então filosofia da religião, e não ciência. Mas 
também é forçoso notar que é isso que fazem também os 
1 
I - - - _._.._.____ - .--. 
20 Que saber sobre Filosofia da Religião 
cientistas mais nominalistas, sem dúvida mais numerosos, 
que acham que a ciência torna caduca toda forma de religião, 
sendo ela integralmente redutível a uma forma de supers-
tição. Para eles, não há diferença real entre a cientologia, o 
islã ou o cristianismo: trata-se de visões errôneas do real que 
abusam da credulidade das pessoas. 
Aqui também o cientista ultrapassa o campo de suas 
competências, o da aquisição de conhecimentos metodologi-
camente verificáveis em um dado campo do saber. A filosofia 
da religião tem ensinamentos valiosos a tirar dos cientistas 
ateus, crentes e agnósticos, mas pode lembrar-lhes que as 
consequências metafísicas que eles estão prontos a tirar de 
suas descobertas, aureolando-se de seu estatuto de cientistas, 
não dependem mais inteiramente da ciência, mas do campo 
da filosofia da religião, o qual se trata aqui de introduzir. 
r 
-- ---
2. O vasto campo da Filosofia da 
Religião 
s debates que acabamos de evocar sobre a ciência 
e a religião confirmam isto, se houver necessida-
de: a religião hoje é objeto das paixões mais for-
tes, o que comprova pelo menos sua vitalidade, e mais ainda 
porque se trata de questões cujas implicações o comum dos 
mortais apreende imediatamente. 
A religião é certamente o lugar de todos os paradoxos. 
Se ela é muitas vezes denunciada como uma forma de alie-
nação, também é vivida e se apresenta na maioria das vezes 
como uma promessa de libertação. Quimérica para uns, ela 
é o que há de mais seguro, de mais fundamental e de mais 
caro para os outros. Enquanto alguns a estigmatizam como a 
raiz de todos os conflitos e de todas as guerras, em nome de 
uma pretensão exclusiva à verdade absoluta, outros a saúdam 
como uma mensagem de paz, de fraternidade e amor, que 
se encontraria, mais ou menos tacitamente, no fundamento 
de nossas sociedades democráticas. Repete-se, à porfia, que a 
religião deve limitar-se à esfera pessoal ou privada, mas rara-
mente isto foi levado à risca em praça pública. Tudo acontece 
como se a separação da Igreja e do Estado não fosse necessá-
ria, a não ser em razão de uma intimidade mais antiga que 
não se poderia ver. É a uma filosofia da religião que cabe ver 
mais claro este ponto. 
1 
.----
- -.-.------
22 i Que saber sobre Filosofia da Religião 
A filosofia da religião pode ter vários sentidos. Em seu 
sentido mais essencial que seguiremos aqui, ela pretende ser 
uma reflexão sobre o fato religioso, sobre seu sentido, suas ra-
zões, sem ignorar o genitivo subjetivo inerente à ideia de uma 
"filosofia da religião", disposta a reconhecer à própria religião 
uma forma de filosofia ou de racionalidade, isto é, uma via 
que conduz à sabedoria. A disciplina se interessa então pe-
las grandes questões religiosas (o sentido do culto, Deus, a 
fé, a Igreja, as prescrições morais etc.) e por tudo o que os 
filósofos puderam dizer sobre essas questões. Trata-se de um 
campo imenso, porque todos os filósofos, da Antiguidade até 
nossos dias, tiveram alguma coisa de importante a dizer sobre 
a religião. Por conseguinte, o campo da filosofia da religião 
coincide confirmando mais ou menos a própria filosofia. 
Graças a Deus, a filosofia da religião pode ser entendida 
em um sentido mais preciso. Ela pode: 1) focalizar a atenção 
em uma questão mais concisa (a essência da religião, Deus, 
a imortalidade, mas esses já são temas enormes); 2) ser com-
preendida como uma análise ou mesmo como uma justifica-
ção dos fundamentos "filosóficos" da religião em geral (Ko-
lakowski, 16: "O que a tradição anglo-saxã chama filosofia 
da religião cobre grosso modo o domínio conhecido desde a 
Idade Média sob o nome de teologia natural, a saber, o exame 
racional de questões teológicas sem referência à autoridade 
da revelação"; era também a convicção de Hegel, 1996, 3), 
ou ainda de uma religião em particular (existe também uma 
filosofia do judaísmo, do islã ou do budismo); 3) interessar-
-se por todas as religiões e por todas as formas do religio-
so, inclusive pelas formas de religiosidade contemporâneas, 
mais ou menos explosivas, e que desconfiam naturalmente 
das religiões oficiais em nome de uma "espiritualidade" que 
pretende ser mais autêntica. 
1 
•••••I 2. O vasto campo da Filosofia da Religião 23 
Todas as religiões também são demais. Já lembramos que 
existem cerca de dez mil denominações,no momento atual, 
que possuem sem dúvida traços comuns, mas uma filoso-
fia da religião que quisesse abranger fenômenos tão diversos, 
como os ritos funerários do neolítico, a mitologia asteca, o 
hinduísmo (ele próprio plural) e os "novos movimentos reli-
giosos", deveria restringir-se a banalidades. 
Aliás, uma filosofia da religião exclusivamente dedicada 
a uma religião particular seria muito pouco, porque ninguém 
pode hoje fazer abstração da pluralidade do religioso. Aconte-
ce que a maioria dos filósofos que se debruçaram sobre a reli-
gião o fizeram privilegiando uma religião particular, na maio-
ria das vezes a sua própria, porque eles conheciam muito mal 
as outras. Platão e Aristóteles podiam apenas pressupor os 
deuses de sua tradição, Agostinho não podia elaborar senão 
uma "doutrina cristã", enquanto autores como Maimônides 
e Averróis tentavam conciliar a filosofia com suas próprias 
confissões, respectivamente o judaísmo e o islã. É difícil fazer 
filosofia da religião sem pressupor uma delas, mas que só cor-
responderá a uma das inúmeras formas do religioso. 
É forçoso confessar que isso continua silenciosamente 
sendo verdade, embora a filosofia da religião não pretenda 
mais tratar só de uma religião particular e mostrar a mais to-
tal objetividade. Para dizê-lo sem rodeios: o cristianismo im-
primiu de tal forma sua marca na filosofia e na reflexão sobre 
o religioso que ele continua a determinar, quer se reconheça 
ou não as reflexões sobre a religião. Sem dúvida, ele mesmo 
foi elaborado sobre as bases judaicas e gregas, e não sem inte-
grar elementos de cultos chamados pagãos, mas pode-se falar 
aqui, em um sentido que pretende ser o mais neutro possível, 
de um domínio ou de uma ascendência do cristianismo sobre a 
concepção do religioso. 
1 
( - -
24 Que saber sobre Filosofia da Religião 
Segundo esta representação tacitamente cristã, a religião 
1) depende primeiro da fé pessoal; 2) essa religião, engastada 
em uma metafísica, crê em um Deus único, transcendente e 
eterno; 3) traduz-se por um culto definido; 4) promulga pre-
ceitos morais (os dez mandamentos, o sermão da montanha, a 
casuística); 5) encarna-se em uma instituição, quase política, 
uma "Igrejà', que tem sua hierarquia de clérigos, seus pasto-
res, seus rabinos ou seus xamãs, até mesmo seu chefe; 6) de-
fine-se por dogmas ou artigos de fé; 7) supõe-se, enfim, que 
esses dogmas são inspirados por textos sagrados, transmitidos 
por uma revelação e sustentados por uma tradição. 
Nada é mais fácil do que mostrar que essas característi-
cas não se encontram em todas as religiões, longe disso. Isto 
não impede que quem se interessar por essas outras formas 
do religioso busque nelas espontaneamente uma forma de 
crença, uma concepção do divino, um rito, uma moral, uma 
hierarquia, certos dogmas e escrituras mais ou menos "sagra-
das" (que ainda continuam vagamente pressupostas quando 
se trata de transmissão oral, de memória ou de tradição, o 
que será o caso da maioria das formas de religião que não 
conheceram ou privilegiaram a escritura). O estudo empírico 
das religiões nos adverte prontamente que algumas religiões 
não conhecem verdadeiramente a noção de crença, que ou-
tras ignoram a ideia de um Deus transcendente, ou único, e 
outras mais não comportam hierarquia, nem dogma, nem 
texto sagrado, nem preceitos morais obrigatórios. Além dis-
so, o esquema cristão já não continua tão forte que se busca-
rá, nolens volens, nas outras "crenças" (termo que já não é ino-
cente) equivalentes "à revelià' para o que o cristianismo nos 
habituou a encontrar em uma religião. Isso continua sendo 
verdade, mesmo quando o cristianismo é combatido com fe-
rocidade (tal religião será valorizada, por exemplo, porque ela 
-----.....,ij~----~-----
1 
• 111 lllllm 2. O vasto campo da Filosofia da Religião 25 
não comporta moral rígida, nem dogmas, nem hierarquia). 
Como se trata de um fato histórico, não é uma ascendência 
que se deve combater a todo preço, cultivando um afeto an-
ticristão, aliás bem-difundido, mas que deve ser levado em 
consideração no quadro de uma filosofia da religião. Con-
cretamente, desde sua imposição como religião do Império 
Romano, o cristianismo dominou a reflexão filosófica sobre 
a religião. Os únicos que conseguiram escapar foram os filó-
sofos muçulmanos, como Al-Farabi, Avicena e Averróis, ou 
Maimônides para o judaísmo, e os filósofos que se abriram 
às religiões orientais desde o Iluminismo, mas esses últimos 
muitas vezes o fizeram para fugir do paradigma cristão. 
No entanto, uma filosofia da religião pode marcar os li-
~ites deste ascendente, partindo ?º que os filósofos gregos 
disseram do fenômeno religioso. E verdade que uma inter-
pretação da filosofia grega da religião continua, nem sempre 
sem~ saber, tributária do horizonte cristão, mas 0 que os gre-
gos tmham a dizer não o é. Há, porém, uma outra razão que 
nos incitará a partir dos gregos: se ninguém pode dizer com 
exatidão quando o fato religioso - supondo que ele existe em 
sua ~nicidade - manifestou-se pela primeira vez, não se pode 
duvidar, mesmo se isto for às vezes contestado, que a filosofia 
nasceu no mundo grego. Ora, esta filosofia foi precedida e se 
tornou possível por causa de uma "mitologia" que admitia 
que a ordem do mundo estava assegurada por deuses sábios 
e benevolentes. A ideia de uma ordem do mundo, de um 
cosmos ao qual o homem deve conformar-se, foi por conse-
guinte prefigurada pela religião. É desta ideia de uma ordem 
do mundo que a filosofia buscará explicar a razão. 
Portanto, a reflexão filosófica sobre a religião é 0 reco-
nhecimento de uma dívida e de uma proveniência. A religião 
precedeu o aparecimento da filosofia e tornou possível sua 
1 
1111 .......................... ~-~ .... --~--------( - .. - ...... --~~. 
26 • Que saber sobre Fllosofta da Rellglio 
busca de sabedoria, de racionalidade e de felicidade. Mas an-
tes de chegar aos gregos, importa determinar as dimensões da 
essência da religião e de sua universalidade. Porque a questão 
filosófica fundamental de uma filosofia da religião é aquela 
que procura compreender sua essência. 
3. A essência da Religião: 
um culto crente 
oderíamos dizer da religião o que Plotino e Agos-
tinho disseram do tempo: como não nos pergun-
tamos para saber em que ela consiste, quase nada 
sabemos sobre ela. Mas mesmo que nos façamos diretamente 
a pergunta, não vamos saber tanto como poderíamos pen-
sar. É que a religião pode ser tudo e seu contrário. Muitas 
vezes se diz que se trata de um "sistema de crenças em uma 
transcendência qualquer". Mas é fácil encontrar religiões que 
não comportam sistema, nem transcendência, e que não se 
reconhecem expressamente como crença. 
O fenômeno religioso admite formas tão variadas que os 
pesquisadores em ciências sociais das religiões se abstêm mui-
tas vezes de defini-lo. É verdade que a atmosfera do tempo, 
nominalista, detesta rodo discurso que trata da essência das 
coisas, como se fosse um palavrão. Associa-se então, de ma-
neira caricatural, a essência a uma ideia um pouco platônica, 
intemporal e de uma constância absoluta. Se há uma coisa 
que o estudo das religiões nos ensina, é exatamente que a 
religião dificilmente corresponde a alguma coisa de idêntico 
em rodas as civilizações. Isso é verdade, mas se falamos de 
formas plurais do religioso, no singular, este deve correspon-
der exatamente a alguma coisa. Por isso a questão da essência 
da religião, longe de esquadrinhar uma ideia a priori, preten-
1 
' 
--- -
28 Que saber sobre Filosofia da Religião 
de responder a essa questão mais elementar: de que se fala 
quando se trata de religião? O que se mantém no fenômeno 
religioso através de todas as suas metamorfoses? Se não hou-
vesse no fenômeno religioso algo de comum, o termo religião 
não terianenhum sentido. E se esse algo não permanecesse 
enigmático, ele simplesmente não interessaria à filosofia. 
É aí que a filosofia da religião pode reconhecer sua ques-
tão principal: ela trata antes de tudo da essência da religião, 
a fim de compreender o que ela é, quais são seus elementos 
e suas razões. Ela não se interessa diretamente pelos índices 
de prática em uma dada sociedade (como pode fazê-lo uma 
sociologia da religião), nem por uma forma determinada, po-
sitiva e confessional de crença (como o faz a teologia), nem 
pelas formas imensamente diversas do religioso (que depen-
dem da antropologia e da ciência comparativa das religiões), 
nem pela importância cultural ou política da religião em nos-
sa civilização (que interessa a uma filosofia da cultura), mas 
pelo que é, fundamentalmente, a religião, por conseguinte, 
por sua essência. 
1. Abordagens funcionalistas e essencialistas 
Geralmente podemos distinguir duas grandes aborda-
gens da religião, a funcionalista e a essencialista, mas que es-
tão longe de excluir-se. 
A abordagem funcionalista admite que a religião existe 
porque ela cumpre uma função mais ou menos evidente para 
aquele que a pratica, mas transparente para aquele que a es-
tuda do exterior. Sua abordagem, fecunda em si, geralmente 
é genealogista e causalista: a religião se explica a partir de 
alguma coisa ou, segundo a fórmula consagrada, e mais crí-
•••••• 3. A essência da Religião: um culto crente 1 29' 
tica, "não é nada mais do que ... ". Aqui a religião não é con-
siderada como um fenômeno autônomo ou originário; ela se 
encontra reconduzida a outra coisa que a razão pode explicar 
melhor e que só ela pode penetrar. 
A resposta à questão da função ou do porquê da religião 
é plural em si mesma. Eis uma visão geral, não exaustiva, 
dessas explicações funcionalistas, que comportam todas elas 
um núcleo de verdade: 
1) A religião teria servido para explicar os fenômenos na-
turais numa época em que a ciência não existia, daí seu re-
curso a potências mágicas e demoníacas. A religião é vista 
aqui como uma pseudociência ou uma forma de animismo, 
extinto desde o advento da ciência moderna. Essa interpre-
tação funcionalista da religião encontra-se desde a Antigui-
dade em Epicuro e Lucrécio, mas é uma leitura que Augusto 
Comte (1798-1857) popularizou quando distinguiu o está-
gio religioso (primitivo) do estágio positivista (científico) da 
humanidade. Essa concepção continua forte no imaginário 
popular, que acha naturalmente que a religião foi suplantada 
pela ciência (mas nós vimos que a advertência dos próprios 
cientistas sobre esta questão era mais atenuada). 
2) Uma outra explicação percebe na religião uma tenta-
tiva de explicar a obrigação moral: é preciso agir moralmente 
porque se trata de um mandamento divino. A religião pro-
põe então uma justificação vertical da moral que permite 
associar-lhe recompensas e penas: age-se moralmente, por 
exemplo, porque se espera uma bem-aventurança futura. O 
fenômeno religioso se explica aqui a partir do sentimento 
moral, considerado mais originário e mais autêntico que ele. 
Nem sempre ele é dito para desacreditar a religião: pensado-
res como Rousseau e Kant dirão que os mandamentos morais 
podem ser vistos como mandamentos divinos, mas que sua 
1 
{ -
30 Que saber sobre Filosofia da Religião 
origem é puramente moral. O selo divino vem conferir-lhes 
uma dimensão de esperança, mas que seria mais ou menos 
equivalente a uma mais-valia, acrescentada à moral. 
3) Mais ou menos no mesmo filão, muitas vezes se pres-
sente na religião uma tentativa de justificar ou de explicar 
uma ordem social e política ou o papel que nela desempenham 
os governantes (faraós, reis), os sacerdotes ou uma casta par-
ticular. É uma filosofia da religião que se encontra tanto nos 
manuscritos do jovem Marx e na Genealogia da moral (1887) 
de Nietzsche, como no Tratado teológico-político de Spinoza. 
A religião, naturalmente considerada como o ópio do povo, 
encontra-se aqui reduzida a um fenômeno sociológico, polí-
tico ou ideológico, considerado mais originário. 
4) Na pista desta ideia de projeção e ilusão, as leituras 
mais psicanalíticas veem facilmente na religião um fenômeno 
de transferência (Deus funcionando como o pai que deve 
proteger o filho que sempre continuamos sendo da incerteza 
da existência) que seria, segundo Freud (1927), o fato de uma 
neurose coletiva e um pouco nardsica. A religião, criada por 
nossos ancestrais, que eram mais ignorantes e miseráveis do 
que nós para enfrentar o esmagador superpoder da natureza 
e paliar nossa impotência face a ela, refere-se a um fenômeno 
de sublimação, de repressão, numa palavra, a uma ilusão que 
a ciência pode hoje penetrar, curando assim a humanidade 
de sua própria neurose. 
5) Há uma última forma de explicação funcionalista cor-
rentemente aceita e que é pressuposta por Freud: ela julga que 
a religião nasce antes de tudo da angústia diante da morte que 
a consciência humana não poderia suportar. A religião seria 
então o fato de uma cegueira voluntária face à finitude huma-
na e ao nada que a morte representa. Para ser difundida, essa 
forma de explicação pressupõe o horizonte do individualismo 
••••• 3. A essência da Religião: UID culto crente 31 
moderno e a importância que ele atribuí à vida e à sobrevivên-
cia da pessoa humana. Mas não é certo que o individualismo se 
aplica a todas as formas de religião: algumas formas do budis-
mo exaltam sobretudo o desaparecimento da individualidade 
na serenidade do nirvana, e parece que as formas mais antigas 
do judaísmo, como muitas outras religiões, não conhecem a 
ideia de uma sobrevivência após a morte. 
2. O caráter imemorial do religioso 
As explicações funcionalistas, todas elas, dizem alguma 
coisa de importante para uma filosofia da religião: quem po-
deria negar que há uma parte de consolação e projeção na 
religião, que ela tem oferecido "explicações" das coisas que 
não são defensáveis ou que ela muitas vezes foi o reflexo de 
uma constelação social ou ideológica? Encontram-se aqui 
elementos de uma crítica à religião (embora nem todas as 
perspectivas funcionalistas sejam necessariamente críticas), 
dos quais se pode pensar que podem ser apropriados pela 
própria religião, a fortiori por uma filosofia da religião, se ela 
quer chegar a uma melhor compreensão de seu objeto. 
Não se poderia esquecer que a crítica da religião sempre 
fez parte da própria experiência religiosa. Isto é particularmen-
te evidente na linhagem formada pelas religiões do Livro, em 
que cada uma se funda em uma crítica daquela que a prece-
de. A religião judaica estigmatiza o culto aos ídolos dos egíp-
cios e alguns cultos judeus infiéis às prescrições de Moisés (o 
bezerro de ouro e todas as imagens encontram-se proscritos 
em nome da transcendência absoluta de Javé). O Novo Tes-
tamento denuncia, por sua vez, a prática dos judeus, julgada 
por demais legalista. O islã critica as aberrações da religião 
-- ----~-..... --
32 : Que saber sobre Fiiosofia da Religião 
cristã, sua concepção da Trindade e a ideia de que Deus possa 
ter um filho. Quanto ao protestantismo, ele nasce de uma 
crítica à versão esclerosada do catolicismo e passará também 
por diversas reformas. Nada é mais religioso do que a críti-
ca da religião. Isso continua sendo verdade para as críticas 
radicais à religião: nelas a religião não é condenada, a não 
ser porque se tem uma concepção mais rigorosa da salvação 
do que é lícito ao ser humano esperar. Pode-se tirar daí uma 
lição importante para uma filosofia da religião: não se pode 
criticar a religião, a não ser que se tenha uma outra coisa a 
propor, uma religião melhor, talvez. 
Também é permitido perguntar se a religião só serve de 
fato para explicar as coisas e para cumprir uma função. Po-
deria ainda acontecer quea religião tivesse uma visão um 
pouco científica das coisas. As interpretações funcionalistas 
pressupõem de fato que toda criação cultural deve corres-
ponder a uma função precisa. Se isso não for certo, é que há 
uma dimensão da religião que depende do "sempre já aí". Há 
efetivamente em quase todas as religiões uma tradição que é 
perpetuada, mas na maioria das vezes de maneira não refle-
tida: a religião se exprime através dos costumes ancestrais, 
dos ritos, dos relatos que são naturalmente retomados. Por 
conseguinte, a religião não foi necessariamente inventada em 
um certo dia por espíritos malignos que queriam justificar 
seu poder ou abusar da credulidade de suas ovelhas. Isto pode 
sem dúvida ter acontecido em alguns casos: houve charlatães 
e gurus que eram puros escroques (fenômeno que não se li-
mita ao mundo religioso). Mas em geral, a parte da tradição, 
da memória e dos costumes "sempre já aí", de maneira ime-
morial, demonstra seu poder na história das religiões. Aqui, 
o indivíduo não se encontra na posição daquele que escolhe 
no cardápio o que lhe convém ou o que corresponde a suas 
3. A essência da Religião: um culto crente 33 
necessidades, mas se integra a um culto transmitido. É isso 
que se pode chamar "passado anterior" de toda religião, sua 
anterioridade em relação à consciência. 
Será que todas as religiões surgem exclusivamente da 
necessidade de crer? Se é permitido duvidar disso é porque 
as religiões existiram bem antes que surgisse a questão do 
porquê e de seu porquê, e bem antes sem dúvida que o crer 
fosse reconhecido expressamente como tal. É o sentido da 
anterioridade imemorial do religioso que faz parte de uma 
realidade transmitida e que se insere numa tradição de me-
mória. Sem dúvida os seres humanos foram em todo tempo 
"crédulos", e ainda o são, mas será que a religião depende 
unicamente dessa credulidade? O judaísmo, como sabemos, 
depende mais da pertença a uma linhagem e uma tradição 
do que da fé (o que ainda assim é mais a norma do que a 
exceção na história das religiões). Aqui, a parte de tradição é 
mais importante do que a da fé, e a ideia de credulidade não 
tem nenhum sentido. 
Sobretudo nos damos conta de que as interpretações 
funcionalistas resultam das interpretações essencialistas: di-
zer da religião que ela é apenas isto ou aquilo é exprimir-se 
sobre sua essência, sobre o que ela é em seu fundo, que se 
pretende decifrar de uma vez por todas. Portanto, ninguém 
escapa de uma abordagem essencialista, de uma reflexão so-
bre o que constitui propriamente a religião, seja qual for sua 
incomensurável diversidade. 
3. Os dois polos da religião 
Há duas dimensões que parecem fundamentais e especí-
ficas à religião: o culro e a crença. 
1 
( - ---- -
34 Que saber sobre Filosofia da Religião 
Isso também não é evidente, porque são dois aspectos 
cujo peso relarivo é às vezes contesrado pelos especialistas. 
É, evidente que para os modernos a dimensão de culto pare-
ce muitas vezes secundária (o único culto verdadeiro, dirão 
Rousseau e Kant, é o do coração). A modernidade associa 
facilmenre o culto e o riro a práticas um tanto mágicas, cuja 
verdadeira religião deveria cessar. Ela prefere reatar a religião 
à noção de crença, pois os dois termos são quase intercam-
biáveis: haveria tanras religiões quantas crenças. Para ela, a 
religião depende mais de uma crença do que de um culto. O 
culto é visto como a consequência da crença (os que creem 
em Moisés, Jesus ou Maomé obedecerão aos cultos instituí-
dos por eles ou aos que se valem deles). 
Simplesmente, essa insistência na crença aparece bem 
mais tarde na história das religiões. Os especialistas lembram 
muitas vezes que as religiões mais antigas não teriam conhe-
cido essa dimensão de crença. Seria o caso das religiões grega 
e romana, como insiste P. Gisel (2007, 54-55): "Na Antigui-
dade greco-romana, a questão do crer não é pertinente. Nes-
sa época o religioso depende de uma relação com o cosmos, 
feito de sabedoria e de medida, ligado à condição do huma-
no. Narrações e mitos diversos, trazidos pelos poetas, relatam 
essa relação ou a colocam em cena; eles contam o mundo, 
diversamente e onde nada é para crer. [ ... ] Em relação com 
o cosmos, a religião antiga é essencialmente ritual. Há ri-
tos a cumprir, acompanhados pelo mito. Os ritos devem ser 
cumpridos em tal lugar, por cada um, seja ele estrangeiro ou 
esteja de passagem; sem este cumprimento a peste ou qual-
quer outra catástrofe cósmica pode sobrevir. Há um rito a 
cumprir, sem engajamento crente nem retomada sobre si". 
Gisel tem razão ao lembrar que a religião antiga era mais 
ritual e cívica. Podemos enumerar práticas e formas de culto 
B1i[~~•lllfl 3. A essência da Religião: um culto crente 35 
em quase todas as religiões antigas que balizam os grandes 
ritos de passagem, o nascimento, o ingresso na comunidade, 
o casamento) os ritos funerários, mas também os ciclos da 
natureza (solstício, plenilúnio etc.). Esses cultos cumprem 
diversas tarefas, infinitamente variadas, de comemoração, de 
pacificação e de comunhão, que se exprimem muitas vezes 
por sacrifícios de animais e às vezes de humanos. Esses ritos, 
coletivos e participativos, administrados por autoridades re-
ligiosas, adivinhos, druidas, arúspices, os quais ocupam fre-
quentemente posições políticas, exercem uma função que se 
pode dizer propíciatória: eles têm por finalidade tornar pro-
pícios ou benevolentes os deuses ou as forças da natureza. Os 
sacrifícios mais "expiatórios", por meio de um bode expiató-
rio (cf. Lv 16,22), cumprem uma função análoga. 
As espiritualidades modernas, mesmo que não excluam 
toda forma de culto, costumam ver de preferência na religião 
uma questão de convicção pessoal (na qual se pode ver um 
efeito do cristianismo e do acento que ele faz incidir na fé). 
Dependendo do engajamento, a religião se torna então uma 
questão cada vez mais) ou até exclusivamente, privada. Em 
sua Carta sobre a tolerância, de 1689, Locke dirá que toda 
religião é uma questão interior: "Toda a vida e o poder da 
verdadeira religião residem na convicção plena e interior do 
espírito; e a fé não é fé sem crença''. Trata-se de uma ideia 
para nós bem banal, mas que para um pensador grego ou um 
sacerdote quéchua seria totalmente incompreensível. 
Se podemos dizer que as religiões mais antigas estavam 
mais centradas no rito, as formas mais recentes de religião 
insistem mais na crença, na dinâmica do cristianismo. Mas 
como ela é mais antiga, pode-se partir da ideia de culto e 
reconhecer-lhe uma dimensão fundamental. Sem dúvida, 
ela se tornou um pouco estranha para nós, mas sobrevive 
{ 
f 36 Que saber sobre Filosofia da Religião 
de maneira importante na ideia de um culto da alma que as 
religiões da crença preservaram e até aprofundaram. A noção 
de culto vem do verbo colere, que quer dizer cultivar. Em 
seu sentido mais agrícola, cultiva-se um terreno para torná-lo 
fértil e, no caso do culto religioso, a fim de torná-lo fecundo 
para a divindade. Todo culto implica, portanto, mesmo in-
conscientemente, um culto de si mesmo, na medida em que 
0 homo sapiens que toma parte em um rito o faz em certo es-
pírito, sabendo ou sentindo (sapiens.0 que se trata de um cul-
to que tem um sentido. É neste sentido que a religião pode 
ser chamada um culto crente, na maioria das vezes partilhado 
por uma comunidade. 
Aqui se pode falar dos dois polos do culto e da crença 
para sublinhar que o religioso pode tender mais para um do 
que para o outro: a religião mais arcaica é evidentemente 
mais ritual, enquanto as religiões modernas e conscientes 
de si mesmas como religiões se compreenderão mais como 
crenças. Mas um polo não se orienta sem o outro: assim 
como uma crença implica um engajamento, certo trabalho 
sobre si, portanto, uma forma de culto ou de prática que 
podelimitar-se a uma oração silenciosa, uma leitura ou um 
olhar sobre a vida, assim o culto que não precisa necessa-
riamente se refletir como crença implica certa orientação da 
existência em certo sentido: um rito só é cumprido porque 
ele é sentido - e, consequentemente, crido - como algo 
significante. 
4. Um sentido da vida traduzido por símbolos 
Quer dizer que o culto crente que é a religião comporta 
uma dimensão simbólica. Ele cumpre ações e ritos cujo alcan-
3. A essência da Religião: um culto crente 37 
ce ultrapassa os próprios gestos: sacrifica-se uma ovelha para 
tornar favoráveis os deuses, como se batiza uma pessoa com 
água para lavá-la de seus pecados. 
O termo símbolo vem do verbo grego sumballein, que 
quer dizer "cair junto"; ele exprime uma fusão entre o que é 
dado e o que ele significa (a água e a purificação). O mundo da 
religião é de súbito um mundo simbólico, que quer dizer al-
guma coisa e que é desde então sensato, razoável. Esse alcance 
simbólico, ou mais simplesmente significante, está, de uma 
ou de outra maneira, presente no espírito daquele que toma 
parte no rito. Se alguém participa em uma cerimônia ou pro-
cissão, é porque pressente (sapiens) que ela tem um sentido. É 
aqui que intervém a dimensão da crença. Mesmo que ela seja 
pouco confessada, ou até ausente, pretendem-se muitas vezes 
ritos das culturas mais arcaicas. Só se pode cumprir um rito 
porque se crê nele, porque se crê em seu sentido, que confere 
um sentido para nosso mundo. Portanto, em sua essência, a 
religião é um culto crente, no qual a dimensão de culto ou 
de crença será mais ou menos ostentada, um culto simbólico 
que reconhece um sentido a nosso cosmos e por conseguinte 
a nossa existência. 
O nominalismo vê na função simbólica uma atividade 
construtiva de nosso espírito, uma simples projeção de nossa 
inteligência, acrescentada à experiência de um mundo antes 
de tudo físico. A religião nos lembra de que isso não é com-
pletamente verdadeiro, visto que o mundo já está cheio de 
sinais que apontam para além do que é imediatamente dado: 
a nuvem carregada é anúncio da tempestade (ou da cólera do 
deus ... ), o rosto pálido é o sintoma de uma doença, o bom 
odor deixa adivinhar alguma coisa comestível ou um parceiro 
interessante. O real é de repente significante, o sentido não é 
uma pura criação de nosso cérebro. 
1 
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38 Que saber sobre Filosofia da Religião 
Como bem o viu Ricoeur, é no próprio mundo que o ser 
humano faz a experiência do sentido e também do sagrado: 
"É antes de tudo no mundo, nos elementos ou aspectos do 
mundo, no céu, no sol e na lua, nas águas e na vegetação que 
o homem lê o sagrado; [ ... ] portanto, antes de tudo é o sol, a 
lua, as águas, isto é, realidades cósmicas, que são símbolos" .1 
Mesmo sem refleti-la sempre como tal, a religião é a ex-
pressão dessa dimensão simbólica do real e da vida: o real é 
mais do que ele dá a perceber à primeira vista. Ele tem um 
sentido. A articulação desse sentido nos cultos e nas crenças é 
a religião. Esta articulação tem algo de universal. 
5. A universalidade da religião 
1) A universalidade da religião significa antes de tudo 
dizer que houve religiões em toda parte, em quase todas as 
civilizações e em todo tempo. Hegel chega a dizer da religião 
que ela é o que o ser humano e as civilizações têm de mais 
próprio e de mais precioso, porque é, como o testemunham 
muitas vezes suas obras de arte ou o que consideramos hoje 
como suas obras de arte, sua realização mais elevada e a fonte 
de sua maior felicidade. Isso o faz dizer que a religião é de 
certo modo o "domingo da vida" (1996, 58), a quintessên-
cia de uma vida que se reflete a si mesma. De fato, ela é o 
que nós mais retemos e admiramos nas culturas antigas ou 
estrangeiras. 
2) A universalidade da religião nos faz lembrar a varie-
dade infinita dos cultos e das religiões. Ela tem a chance de 
nos prevenir contra as ideias preconcebidas a propósito da 
religião que a associam tão pronta ou tão comodamente a 
1 P. R1coEUR, Philosophie de la volonté, li: Finitude et cu/pabilité, Aubier, 1988, 174. 
3. A essência da Religião: um cuHo crente 39 
uma forma particular da religião, como se faz muitas vezes, 
quer se trate do integrismo muçulmano ou do jansenismo 
católico. Será que é verdade dizer que todas as religiões são 
hostis à sensibilidade, à mulher, que elas sejam votadas a uma 
alienante transcendência metafísica? A universalidade da re-
ligião nos lembra de que isso está longe de ser evidente. Há 
religiões que veneram realidades naturais, como o sol e os 
animais, que não têm nada de metafísico. Algumas quase não 
falam de Deus ou de um Deus transcendente, outras estão 
mais associadas a etnias. Mas, em todas elas, a filosofia pode 
pressentir um culto crente que se traduz por símbolos que 
reconhecem um sentido para nosso universo. 
3) Dessa maneira, a universalidade da religião vem subli-
nhar que nenhum ser humano existe verdadeiramente sem 
alguma forma de religião, isto é, sem alguma orientação fun-
damental a respeito de sua existência, por embrionária que 
ela seja. Alguns vão preferir chamar isso de espiritualidade, 
visão do mundo ou filosofia de vida. Aqui cabe lembrar a 
fórmula de Agostinho, segundo a qual cada um é uma per-
gunta, um problema para si mesmo; ou a de Heidegger, para 
quem o homem é o ser que trata em seu ser de si mesmo. Essa 
preocupação traduz uma inquietação a propósito do sentido 
da vida, o que as religiões procuram articular. Uma visão não 
religiosa do mundo buscará a sua maneira o equivalente a 
esse sentido. 
4) A universalidade da religião vem, enfim, sublinhar a 
ideia de que a religião propõe uma salvação que pretende, em 
princípio, ser universal. A religião, e a utopia que a anima, 
encontra-se à origem de nossa própria concepção da univer-
salidade. É incontestável que o universalismo dos direitos 
humanos tem tudo a ver com a universalidade da salvação 
proclamada por São Paulo na Epístola aos Gaiatas (3,28). 
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40 Que saber sobre Filosofia da Religião 
Por isso o fim da religião dificilmente pode ser proclama-
do, a não ser que se creia em outra coisa. Mas em quê? É aos 
que querem ultrapassar o estágio religioso da humanidade 
que cabe respondê-lo. Todavia, é possível que lhes seja difícil 
fazê-lo sem empréstimos maciços ao discurso religioso 
4. O mundo grego 
1. A "religião" grega 
s vezes nos perguntamos se a religião é um fenôme-
no grego. Se duvidamos disso, é porque dificilmen-
te encontraremos um equivalente exato para o ter-
mo latino religio. Mas esses equivalentes existem. Resta saber 
se são exatos. Os gregos têm uma noção de piedade (eusebeia), 
da qual falou Platão no Eutí.fron e nas Leis, que corresponde 
não tanto a um estado de espírito devoto, mas à observância 
dos ritos e das orações exigidos pelo culto da cidade. Quando 
Sócrates foi acusado de impiedade, ele respondeu que, ao con-
trário, ele sempre honrou os cultos da cidade. 
Se o grego não conhece o termo religião, ele fala natu-
ralmente das "coisas sagradas", no neutro plural (ta hiera; o 
singular, to heron, designa muitas vezes a vítima sacrificial), 
ou ainda das "coisas divinas" (ta theia, Eutí.fron, 4 e), ou de-
pendendo da piedade (osion). Essas coisas religiosas remetem 
ao mundo dos deuses, cuja evidência é reconhecida pelos 
gregos, porque sua natureza e sua mitologia estavam cheias 
delas. A experiência do divino (theos) é a de uma potência 
superior. Os deuses são muitas vezes chamados "superiores" 
(kreittones) em Homero. Os deuses não são vistos como tais, 
mas se pode reconhecê-los por seus efeitos. "O que faz de 
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42 Que saber sobre Filosofia da Religião 
uma potência uma divindade é que ela reúne sob sua auto-
ridade uma pluralidade de'efeitos', para nós completamente 
disparatados, mas a que o grego se assemelha, porque vê neles 
a expressão de um mesmo poder exercendo-se nos domínios 
mais diversos. Se o raio e as alturas são de Zeus, é que o deus 
se manifesta no conjunto do universo em tudo o que traz a 
marca de uma eminente superioridade, de uma supremacià' 
(Vernant, 13). 
Essa superioridade do divino se estende a realidades não 
mais físicas, mas psicológicas, éticas e institucionais. Uma pai-
xão que nos arrebata, ou que nos abandona, é coisa de um 
deus: a coragem, a serenidade, a cólera, mas também a astúcia. 
Na Ilíada, é Apolo que insufla coragem em Heitor por ocasião 
de seu combate contra Aquiles, o qual é apoiado por Atena, a 
filha de Zeus. Os deuses se perguntam então se o valente Hei-
tor deve ser salvo. Atena se impõe, e a balança de Zeus pende 
em favor de Aquiles. Quando Heitor se dá conta de que seu 
deus o abandona, ele aceita sua sorte e se deixa cair. 
O pensamento grego do divino não está centrado no 
sujeito crente, mas no poder do divino que rege o mundo 
e também as forças do destino, da vida e do crescimento. 
Como disse W F. Otto (Os deuses da Grécía, 1929), o olhar 
grego vê o mundo como divino e o divino como mundo. 
Mas não se trata de uma religião da natureza: "O raio, a tem-
pestade, os altos picos não são Zeus, mas de Zeus" (Vernant, 
13). O deus é a expressão de um poder superior do qual o 
ser humano compreende bem poucas coisas. Essa separação 
do mundo dos deuses e dos homens é essencial e continuará 
sendo para a filosofia grega da religião: os deuses são seres 
imortais e bem-aventurados, enquanto os mortais estão su-
jeitos ao trespasse de pobres criaturas que fenecem depois de 
uma breve floração (Ilíada, 21, 464). 
4. O mundo grego 43 
Essa visão divina do mundo é transmitida por relatos 
que constituem a rica mitologia grega, da qual não existe 
uma única versão canônica. Os mais célebres são os de Ho-
mero e o mais sistemático o de Hesíodo, que mostrou em sua 
Teogonia como o império dos deuses do Olimpo, governados 
por Zeus, depois de um combate de titãs contra as divinda-
des mais antigas da terra se impôs. Portanto, o mundo pas-
sou do caos à ordem olímpica, instaurada por Zeus, que veio 
tarde, mas como "pai dos deuses e dos homens", segundo 
Hesíodo. 
São antes de tudo os deuses olímpicos, Zeus e sua proge-
nitura, que serão o objeto de um culto na Grécia clássica, mas 
foram conservados os cultos das divindades mais antigas, mais 
terrestres e até subterrâneas. Cada cidade terá suas divindades 
tutelares e lhes votará um culto particular (Atena vela por Ate-
nas e Esparta, enquanto Apolo protege os troianos). 
Essa "piedade" assemelha-se a outros cultos da Antigui-
dade que têm sua mitologia, sua teogonia e uma experiência 
semelhante à do superpoder do divino, mas ela prepara a fi-
losofia por ao menos dois traços: 
1) os deuses, sobretudo olímpicos, são responsáveis tan-
to pela ordem da natureza como pela ordem da alma e da 
cidade; por conseguinte, o real é visto como algo ordenado 
e "racional" porque governado pelos deuses; a filosofia grega 
brotará desse reconhecimento de um cosmos regido pela ra-
zão, mas lhe dará uma feição menos mitológica; 
2) a separação do mundo dos deuses e dos humanos será 
mantida pela filosofia: se os deuses gregos são imortais, sem-
pre belos, sem idade e sábios, os seres humanos estão sujeitos 
à morte e não são sábios, senão quando se submetem à von-
tade dos deuses. Aqui há uma diferença que se pode dizer 
metafísica entre o mundo divino, definido por sua perma-
1 
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44 Que saber sobre Filosofia da Religião 
nência e sua sabedoria, e o mundo humano, considerado ins-
tável e sujeito a opiniões que mudam. A separação depende 
ao mesmo tempo do ser e do conhecimento: de um lado, a 
estabilidade, a permanência e o saber, e, de outro, a incons-
tância e a cascata de opiniões. 
2. Os filósofos pré-socráticos e a religião 
Poetas como Píndaro e os autores trágicos (Ésquilo, 
Sófocles e Eurípides) não cessarão de lembrar o abismo 
que se cava entre os imortais e os mortais. A principal 
diferença vem do poder: eternos e bem-aventurados, os 
deuses dispõem tudo a seu bel-prazer, enquanto a felici-
dade dos mortais, se ela existe, não dura. Por sua inteli-
gência, sua glória ou sua alma, alguns têm certos traços 
de semelhança com a divindade, mas é porque um deus 
os assiste. Mas ai deles se pretendem opor-se aos decretos 
dos deuses. 
Os primeiros "filósofos" nem sempre distinguem sua vi-
são dessa herança mítica, mas tiram dela antes de tudo lições 
de sabedoria. Tales, do qual diz Aristóteles que foi o primeiro 
dos filósofos, porque procurou explicar todas as coisas a par-
tir de um princípio, afirmou que tudo está cheio de deuses 
(passagem que Platão aplaudirá em suas Leis). Heráclito, o 
"obscuro", tenta pensar o Logos, isto é, o "Uno", que existe 
sempre, mas sublinha que os seres humanos são incapazes de 
entendê-lo, tanto antes de entendê-lo como depois de tê-lo 
entendido pela primeira vez. Se o conflito é o pai de todas as 
coisas, ele deu a uns a forma humana, a outros a forma divi-
na, entendendo-se que a divindade possui o entendimento e 
que o ser humano está desprovido dele (fg 53, 78). Portan-
4. O mundo grego 45 
ro, o ser humano será considerado pela divindade como um 
menino, como o filho pelo homem. Se para o deus todas as 
coisas são belas, boas e justas, os humanos inventaram a ideia 
de que algumas eram injustas e outras justas (79,102). 
Parmênides pressupõe essa distinção, mas toma a liber-
dade de colocar sua própria doutrina na boca de uma deusa, 
artifício do qual Platão se servirá às vezes, quando recorrer a 
mitos ou a uma revelação prodigalizada por uma deusa. Em 
seu poema, redigido em hexâmetros, como eram os textos de 
Homero, de Hesíodo e de Heráclito, trata de um herói que se 
deixa transportar pela via nomeada da divindade e conduzir à 
deusa Dique (a Justiça, filha de Têmis e Zeus, como Arena), 
que vigia uma porta que dá para o céu. Ela o deixa entrar, 
depois o herói será recebido por uma outra deusa que lhe 
revelará "todas as coisas", tanto o estável núcleo da verdade, 
como as opiniões dos mortais, às quais ele não deverá dar 
nenhum crédito. Essa revelação da verdade está ligada a uma 
doutrina sobre o ser, que diz do ser que ele é e do não ser que 
ele não é. Como neste caso não pode haver passagem do ser 
ao não ser, o devir e o movimento são impensáveis, portanto 
inexistentes. Certamente os pobres mortais acreditam que há 
devir, mas se deixam então enganar pelas aparências e pelas 
palavras, das quais é preciso resguardar-se. 
Nem a doutrina de Parmênides, nem o pensamento hera-
direano do logos mostram que os filósofos podiam apropriar-
-se da tradição religiosa com uma grande liberdade. Aliás, al-
guns dos primeiros filósofos criticaram o antropomorfismo. 
Xenófanes reprova os poetas por terem atribuído aos deuses 
propriedades por demais humanas: "Se os bois e os leões ti-
vessem mãos e pudessem pintar como o fazem os humanos, 
eles dariam aos deuses que eles desenhassem corpos bem pa-
recidos com os deles, os cavalos os colocariam sob a figura 
1 
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46 Que saber sobre Filosofia da Religião 
de cavalos e os bois sob a figura de bois"; umco e todo-
-poderoso, soberano dos mais fortes, deus não é semelhante 
a nós, nem no espírito nem no corpo; os humanos, ao fazer 
os deuses a sua imagem, emprestam-lhes seus pensamentos, 
suas vozes e seus rostos". Essa crítica do antropomorfismo vai 
continuar sendo um lugar comum na maioria dos filósofos, 
mas é preciso saber que ela é comandada por um princípio 
que vem da própria religião grega, o da transcendência radical 
do mundo dos deuses em relação aos humanos. 
Os sofistas irão mais longe em sua crítica. Protágoras é 
o autorde um tratado perdido Sobre os deuses. A tradição 
dirá às vezes que ele havia negado a existência dos deuses, 
mas ele mesmo se diz, mais modestamente, na dúvida. Ele 
afirma que não se pode saber se os deuses existem, muitas 
coisas nos impedem de sabê-lo, entre as quais a invisibili-
dade deles e a brevidade da vida humana. Portanto, trata-se 
mais de uma confissão de modéstia do que de um ateísmo 
manifesto, aliás raro, se não inexistente, entre os pensadores 
gregos. 
3. Platão: uma religião que se tornou metafisica 
Os deuses são responsáveis pela ordem, pela beleza e 
pela virtude, mas também são transcendentes, pois habitam 
o Olimpo. Nem sempre eles são lembrados, mas as famosas 
ideias de Platão substituirão de certa forma os deuses da mi-
tologia. E, como nela, as ideias serão reconhecíveis pela for-
ma (eidos) e pela constância das coisas. Toda a nova sabedoria 
de Platão está fundada nessa constância do aspecto das coisas 
que pode ser apreendida pelo pensamento, o órgão divino 
em nós. Ela também será sustentada por mitos em que Pia-
4. O mundo grego 47 
tão vai reapropriar-se da tradição mítica, não sem lhe fazer 
severas críticas quando ela disser coisas imorais a propósito 
dos deuses. 
Se Whitehead pode dizer que toda a história da filosofia 
podia ser lida como uma sucessão de notas à margem do 
texto de Platão, isto é ainda mais verdadeiro de sua filosofia 
da religião: por seu pensamento e seus conceitos, Platão é 
o pensador que exerceu a mais profunda influência sobre o 
pensamento do divino, da religião e da transcendência. A 
ironia é que o próprio Platão fala bem pouco dos deuses, pelo 
menos de maneira direta. Os deuses, ninguém jamais os viu, 
diz ele em seu Fedro. Foram os poetas que nos falaram deles, 
mas eles nem sempre o fizeram de modo credível. Podemos, 
no entanto, fazer deles uma ideia conveniente, dizendo que 
se trata de "viventes imortais" (246 c). 
No pensamento de Platão vários princípios parecem 
ocupar o lugar do divino de maneira mais ou menos eviden-
te: 1) primeiramente é o caso das próprias ideias, arquétipos 
da ordem e da harmonia de nosso mundo, mas 2) isso se 
aplica especialmente ao grande princípio da ideia do Bem que 
governa as outras ideias; 3) Platão dirá em seu Timeu que 
nosso mundo foi moldado por um artesão, um demiurgo, 
que teria insuflado espírito na matéria, tomando por modelo 
as próprias ideias. Há, portanto, três ou dois candidatos para 
ocupar a posição do divino em Platão: a ideia do Bem, ou as 
ideias em geral, e o demiurgo. A tradição cristã os identificará 
quando ela compreender Deus como o Bem supremo e fará 
dele o criador de nosso mundo. Os deuses continuam dis-
tintos em Platão, porque seu demiurgo não é absolutamente 
um deus criador. 
1 
48 Que saber sobre Filosofia da Religião 
4. A fundação platônica da metafísica 
Platão retoma de Parmênides, mas também da tradição 
mítica, a separação entre dois tipos de saber, o saber de opi-
nião e a verdade (ou a ciência), assimilando o primeiro ao 
saber comum dos mortais e a segunda ao equivalente de uma 
revelação divina (Banquete). A esses dois tipos de saber cor-
respondem, e isto é bem novo, ainda que a religião permitisse 
pensar nisso, dois níveis de realidade: 
1) a realidade imediatamente visível que vemos com os 
olhos do corpo: trata-se do mundo sensível, governado por 
um , o sol; 
2) o mundo inteligível que transparece no mundo sensí-
vel, através da beleza, da justiça, da harmonia, mas que não 
se pode ver propriamente, a não ser com o olho da alma, o 
olhar do espírito, graças a uma intuição direta, cegante para 
aquele que não está habituado a esse olhar. Esse mundo é por 
sua vez regido por um rei, a ideia do Bem. 
Esses dois mundos formam o arcabouço metafísico do 
platonismo. Mas esta separação será retomada na ''metafísi-
ca" de diversas religiões ("o céu e a terrà'), que vai inspirar-se 
habitualmente nas delimitações platônicas: visível/invisível, 
sensível/inteligível, corpo/alma. 
A distinção desses dois mundos corresponde a uma in-
tenção de explicação racional. Trata-se de explicar racional-
mente a ordem do mundo, da alma e da cidade, a partir dos 
aspectos de constância que ele manifesta (são precisamente 
esses aspectos de ordem que levavam os poetas a falar de uma 
presença do divino; Platão nem sempre será contrário a isso, 
porque ele próprio atribuirá às ideias os traços da perma-
nência, da identidade, da beleza e da eternidade que eram os 
traços dos deuses). Aqui a razão se descobre à fronteira da re-
4. O mundo grego 49 
ligião, da filosofia e da poesia. A noção de razão opera então 
pelo menos em três níveis: 1) ela caracteriza primeiramente 
a ordem do mundo (pensamos no logos de Heráclito), regido 
pelas ideias: o mundo é racional porque penetrado de prin-
cípios ideais ou de essências; 2) a razão depende em seguida 
da própria explicação racional (logon didonai, dar razão); ex-
plicar racionalmente o mundo é partir da hipótese da ideia, 
da qual se deve poder dar razão de maneira rigorosa, isto é, 
argumentativa (ou dialética), mesmo que esse procedimento 
deva desembocar em uma visão pura e simples da ideia, colo-
cada como razão última; 3) a razão designa também a razão 
intelectiva, capaz de pensar ou apreender essas realidades fun-
damentais, o "olho da alma" ou a inteligência. 
Essa intenção de explicação racional culmina no princí-
pio absoluto da ideia do Bem. É que a razão última que presi-
de a ordem do mundo é estritamente sem condição (anhypo-
theton). anhypotheton ou princípio último corresponde 
ao que a tradição chamará de absoluto. Platão também dá a 
entender que se trata de um princípio transcendente (epekei-
na tes ousias), "além do ser", mas a transcendência em ques-
tão designa sobretudo, no contexto da República (509 b), a 
superioridade da ideia do Bem, em dignidade e em poder, 
em relação às outras ideias. Mas os neoplatónicos verão na-
turalmente aqui uma transcendência ontológica radical do 
princípio supremo que eles chamarão de Uno. Assim, Platão 
elaborou os conceitos que permitiram à filosofia da religião 
pensar a transcendência do divino. 
Platão recorreu habitualmente a representações mais 
míticas para pensar a separação do sensível e do inteligível. 
Assim ele dirá que podíamos outrora perceber melhor as rea-
lidades divinas que são as ideias, antes que nossa alma caísse 
num corpo, que é como urna prisão para ela. O pensamento 
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50 Q• saber sobre Filosofia da Religião 
das ideias requer, portanto, um esforço de anamnese, que 
ele identifica à filosofia. O ser humano deve aspirar a de-
simpedir-se do elemento corporal que o arrasta "para bai-
xo". Ele deve inclinar-se para a realidade superior e tornar-se, 
na medida do possível, "semelhante ao divino". É o grande 
tema platônico da homoiôsis theô ( Teeteto, 176 a): o ser hu-
mano pode e deve tornar-se semelhante à divindade e, por 
conseguinte, fugir do que é corporal (mesmo se em outros 
contextos a beleza corporal possa servir de trampolim para o 
inteligível). Não poderíamos subestimar a posteridade desse 
motivo que assimila a busca do divino a uma fuga do sen-
sível. Agostinho e uma grande parcela das religiões cristã e 
muçulmana se inscreverão nesta linhagem do neoplatonis-
mo. Platão certamente não a inventou: ela já se encontrava 
na tradição órfica da Grécia, como em Pitágoras, mas foi ele 
quem a levou ao conceito. 
Podemos perguntar-nos se esta conceitualização metafí-
sica de distinções que estão em graus diversos, apropriada à 
esfera religiosa (visível/invisível, baixo/ alto, sensível/ espírito), 
não acaba por transformar a religião, porque esta, na esteira 
do platonismo, se compreenderá a si mesma de maneira cada 
vez mais metafísica. É que a sublimação metafísica da religião 
em Platão reforça nela o elemento dereflexividade ou de co-
nhecimento, uma vez que é pelo espírito que adquirimos o 
conhecimento de realidades inteligíveis. A gnose (gnôsís == co-
nhecimento) dos primeiros séculos de nossa era fará disso seu 
prazer. Mas se a religião depende mais do conhecimento (do 
que do culto, por exemplo), qual é seu estaruro? Será que este 
"conhecimento" é comparável ao conhecimento que temos 
das reali9ades matemáticas ou sensíveis? A posteridade me-
tafísica de Platão deverá por conseguinte esclarecer esse esta-
tuto epistêmico da religião que se tornou mais problemático 
4. o mundo grego 51 
(o termo "fé", pistís, cumprirá imediatamente esta tarefa, en-
quanto o termo ainda designava, em Platão, apenas a certeza 
sensível). Mas será que este reforço do elemento cognitivo, 
por mais firme que seja, não relega à sombra elementos que 
sempre fizeram parte da religião - o culto, o mito, o estatuto 
imemorial - e por conseguinte não questionados do religio-
so? Não há dúvida de que são desenvolvimentos importantes, 
até mesmo cruciais, que transformarão até a compreensão 
que a religião tem de si mesma. Mas essas metamorfoses do 
religioso, provenientes de sua metafisicação, ainda são estra-
nhas a Platão, que não chega a distinguir tão nitidamente as 
esferas do religioso e da filosofia e não teme inspirar-se na 
herança da tradição mítica para apresentar suas ideias. 
Assim, pois, muitos textos e mitos de Platão tratam da 
sorte que espera a alma depois de sua morte: as almas com-
parecerão então diante de um tribunal instaurado por Zeus, 
onde serão julgadas por juízes imparciais. Elas serão despidas 
de seus corpos a fim de não serem julgadas em função de 
suas aparências e do prestígio que estava associado a elas. Só 
contará o bem e o mal que tiverem feito. As almas boas serão 
enviadas para a ilha dos bem-aventurados, o equivalente a 
um paraíso, enquanto as outras serão expedidas para a região 
subterrânea do Tártaro, onde algumas serão julgadas curá-
veis, outras incuráveis, e receberão penas correspondentes 
(Górgias, 526). A ideia de um juízo final inspirou-se nesses 
mitos que reconhecem um sentido e um destino futuro para 
a vida humana: cada um deve viver sua vida como se ela de-
vesse ser julgada. 
Se Platão foi um grande fundador de conceitos e de mi-
tos, ele foz jus à experiência mais mística da realidade superior. 
O princípio último da ideia continua indizível e só pode ser o 
objeto de wna contemplação direta. A ideia não pode ser vista 
1 
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52 Que saber sobre Filosofia da Religião 
senão num instante repentino, mas que nos cumula de felicida-
de, porque é nesse momento preciso, e divino, que a vida vale 
a pena ser vivida (Banquete 211 d). A alma encontra-se então 
saciada da realidade divina. Mas Platão sabe que a argumentação 
filosófica não é a única via que leva a esse estado. A elevação à 
realidade superior comporta também algo de erótico. Pelo amor, 
que é um delírio vindo dos deuses (Fedro, 245 b), estamos fora 
de nós, em transe (mania), porque transportados por urna outra 
realidade. Toda a mística se nutrirá dessas passagens. 
A experiência do amor nos faz lembrar as ideias que po-
díamos ver em existências anteriores, quando nossas almas 
seguiam o sublime cortejo dos deuses. Os deuses são de fato 
viventes imortais que formam urna prodigiosa procissão, di-
rigida por Zeus, seguido dos olímpicos, que passam sua vida 
a contemplar as realidades eternas que se encontram em um 
lugar supraceleste. "Esse lugar supraceleste", dirá Platão, "ne-
nhum poeta ainda, daqueles daqui de baixo, cantou hino em 
sua honra, e ninguém cantará jamais um hino que seja digno 
dele" (Fedro, 247 c, Robin). Isso nos mostra que Platão não 
é apenas o pai da mística, mas também da teologia negativa, 
tão determinante para a filosofia da religião: deuses, ninguém 
pode falar deles de uma maneira que seja digna. É verdade 
que alguns poetas são hábeis em fazê-lo, mas nem sempre 
têm dito coisas digas do divino. Eles também devem ser cen-
surados em nome de uma concepção mais pura do divino. 
5. A crítica da tradição mítica: a agatonização 
do divino 
Platão não faz objeção a que os poetas (Homero, He-
síodo) falem dos deuses. Eles o fazem às vezes de maneira 
4. O mundo grego 53 
muito justa, mas não raramente seus relatos são francamente 
chocantes, porque indignos dos deuses. No segundo livro da 
República, Platão fará duras críticas a esses relatos que ocu-
pam um lugar importante na educação dos gregos. Neles está 
em questão a formação que devem receber os guardiões da 
cidade ideal que se trata de fundar. É evidente que não se 
deveria contar-lhes histórias mentirosas, como as que as boas 
mães comam aos filhinhos no berço (República, 377 b; Leis, 
887 d). Ele se refere aos relatos de Homero e de Hesíodo, que 
atribuem aos deuses indigências humanas, humanas demais, 
quando nos fazem crer que teria havido uma guerra entre os 
deuses e que Crono teria mutilado seu pai Urano, antes de 
ser expedido ao Tártaro por seu filho Zeus. Isso são compor-
tamentos que se podem atribuir aos Imortais? 
Dos deuses só se pode dar uma imagem boa, decide Platão. 
A única maneira de falar deles é falar bem: "Mas a realidade 
da bondade não pertence ao que é Divindade e, de fato, não é 
conforme esse princípio que devemos falar deles? Na verdade, 
no mundo do que é bom (agathon), não pode, porém, ter nada 
que seja prejudicial" (República, 379 b, Robin). 
Um verso de Homero diz que haveria à porta de Zeus 
"dois tonéis cheios de sortes, que são boas em um deles e más 
no outro", e que todos os nossos males e nossa felicidade de-
correriam dessas sortes. Será que os deuses são então respon-
sáveis por nossos males? Seria blasfematório pretender que 
o sejam. A divindade não é a causa de todas as coisas, mas 
apenas das que são boas. Não se pode dizer que a divindade 
tenha realizado ações injustas, a menos que se descubra uma 
justificação para essas ações (logos, 380 a), o que abre a porta 
para uma interpretação moral e alegórica do agir divino: o 
(ltte pode parecer chocante à primeira vista pode ser entendi-
do em um sentido moral. 
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54 Que saber sobre Filosofia da Religião 
Platão completa, por essa via, se nos permite o neolo-
gismo, uma "agatonização" do divino, sua racionalização, se 
preferirmos: o divino é a sede da bondade (agathon) e só é 
responsável por ela. Se os poetas, levados por sua imaginação, 
falam outra coisa dos deuses, é preciso censurá-los. Esta é 
uma conquista importante da filosofia da religião: a reflexão 
filosófica e, por conseguinte, racional, sobre a religião não 
permite que se fale do divino de uma maneira que não seja 
digna dele. Sendo assim, poderíamos temer que a filosofia 
dite suas condições de racionalidade à religião, mas este cri-
tério de bondade e de razão vem primeiro da própria religião 
grega. Foi ela que nos ensinou que o mundo da divindade era 
o mundo da bondade. A filosofia apenas exige que a religião 
seja consequente com ela mesma. 
É bom notar que é neste contexto preciso que Platão será 
o primeiro a empregar o termo teologia (379 a): "Para nós, 
a questão é precisamente saber quais podem ser as formas 
apropriadas quando se trata dos deuses". A teologia, o discurso 
sobre os deuses, tem sido principalmente o apanágio dos poe-
tas. Já é hora de a filosofia ter sua palavra a dizer. 
&. Platão e a religião da cidade 
Eutífron. O mestre de Platão, Sócrates, foi acusado de 
impiedade, crime supremo, uma vez que coloca em ques-
tão os fundamentos da cidade. Para Platão, sempre se tratou 
de uma acusação perversa feita por indivíduos infinitamente 
menos piedosos do que Sócrates. 
Ele o dá a entender em seu diálogo aporético de juven-
tude, o Eutífron, aporético porque não chegou a nenhum re-
sultado definitivo, mas suas lições são daras. Nele,Sócrates 
55 
discute com um adivinho que processa seu próprio pai por 
impiedade. Que crime cometeu ele? Um dia, um dos em-
pregados de seu pai degolou um escravo. Seu pai o fez atar 
de mãos e pés e jogar numa fossa que lhe servia de prisão, 
enquanto enviava um mensageiro para informar-se junto de 
um exegeta sobre o que deve ser feito com o assassino. Mas 
este morre em consequência da situação em que foi deixa-
do, antes que o mensageiro volte. Eutífron acha então que 
seu pai é culpado de homicídio e instaura um processo por 
impiedade contra ele ... É então um grande mestre da "pieda-
de" e que promete instruir Sócrates (of all people) a respeito 
de sua essência. Mas o desenrolar do diálogo deixa o leitor 
adivinhar que a verdadeira impiedade se encontra naquele 
que processa seu próprio pai por um crime tão duvidoso, 
e que a impiedade se encontra às vezes naqueles que fazem 
acusações de impiedade, como foi o caso dos acusadores de 
Sócrates. Várias definições da piedade serão então debatidas 
nesse diálogo. Eurífron afirma em certo momento: o que é 
piedoso é o que é agradável aos deuses. Surge então o proble-
ma, apontado por Sócrates: o que é piedoso é amado pelos 
deuses porque é piedoso, ou será que por ser amado por eles 
é que se torna piedoso? Há aqui um círculo que parece asso-
ciar a piedade a uma forma de cálculo: é preciso ser piedoso 
porque se pensa que isso agrada aos deuses? 
Um problema também grave aparece quando se propõe 
que a piedade é o cuidado que se tem dos deuses (therapeia 
theôn). Sócrates se pergunta então se os deuses têm de fato 
necessidade de que se cuide deles. Desejaríamos, por acaso, 
torná-los melhores? Que utilidade poderiam eles tirar de nos-
sas oferendas? 
A moral é límpida: a piedade em relação ao divino não só 
não é uma questão de comércio (os deuses não têm necessi-
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56 Que saber sobre Filosofia da Religião 
dade de nossas ofertas), como também não é de um adivinho 
que processa seu próprio pai por um "homicídio involuntá-
rio" que se aprenderá o que é a piedade. 
Leis. Se Platão critica Homero e Hesíodo, ele sempre 
mostrou muito respeito pelos cultos da religião oficial, como 
comprova seu último diálogo, que é também o mais longo, as 
Leis, consagrado à instituição das leis da cidade ideal. Aliás, 
suas primeiras linhas evocam o divino, quando o estrangeiro 
ateniense coloca sem rodeios a questão: "É a um deus, estran-
geiros, ou ao um homem que atribuis a instituição de vossas 
leis?" A resposta é unânime: a um deus, se é verdade, como 
o quer a antiga tradição, que a divindade "tem em mãos o 
começo, o meio e o fim de tudo o que existe". Portanto, os 
primeiros deveres serão para com a divindade, a qual é "a me-
dida de todas as coisas", e ela o é muito mais do que, no dizer 
de alguns (Protágoras é apontado), este ou aquele homem 
(716 e). Esses deveres correspondem amplamente aos da reli-
gião ancestral: "Para o homem de bem, sacrificar aos deuses, 
ter com eles um comércio constante por meio das orações, 
das oferendas, por tudo o que no conjunto comporta o culto 
aos deuses, eis o que é o mais belo, o melhor, o mais eficaz 
em relação à felicidade de sua vidà' (716 d). Retenhamos 
este vínculo entre a religião e a felicidade, porque os deuses 
irão muitas vezes de par para um amplo lado da filosofia da 
religião. 
Leis estritas deverão ser promulgadas contra a impieda-
de, porque, se o homem mantém que os deuses existem, ele 
jamais cometerá o ato ímpio. As Leis julgam que a impiedade 
tem lugar em três circunstâncias: 
1) se cremos (hegoumenos) que os deuses não existem; 
2) se cremos que eles existem, mas que não se preocu-
pam com a sorte dos seres humanos; 
4. O mundo grego 57 
3) se pensamos que eles se deixam dobrar ou seduzir por 
meio de sacrifícios ou de orações. 
Se a primeira forma de impiedade merece reter a nos-
sa atenção, é que ela faz intervir um verbo que exprime 
a crença (hegeomai). Muitas vezes se aleg~ que essa crença 
não existia, mas sem razão, entre os gregos. O verbo hege-
omai, seguido de uma proposição infinitiva (tina ti), que é 
o equivalente de uma subordinada, quer dizer considerar, 
julgar, estimar que ... (aqui: que os deuses existem). Ele não 
se limita à esfera religiosa (por exemplo, mesmo no Novo 
Testamento, o verbo será utilizado, 2Tm 3,5, para dizer que 
se "tem alguém por um inimigo"). A melhor maneira de 
traduzi-lo é dizer que "mantemos que os deuses existem". 
O acento recai sem dúvida menos sobre o ato de crer (pelo 
menos na época de Platão) do que sobre a proposição su-
bordinada que segue: mantemos que há deuses, que eles se 
ocupam de nós ... Mas dizer que os gregos ignoravam toda 
noção de crença, é ir longe demais ou ignorar um testemu-
nho tão patente como as Leis de Platão. 
Para contrariar aqueles que queriam pôr em questão a 
existência dos deuses, convém elaborar demonstrações da exis-
tência dos deuses. Platão encontra essas provas tanto na ordem 
do mundo, e mais particularmente no movimento regular dos 
astros, como no fato de que gregos e bárbaros admitem (886 a: 
nomizein, admitir, crer ... ) a existência dos deuses. 
A prova mais patente, para Platão, como para os gregos 
e latinos, está na constância admirável dos astros, cujo mo-
vimento eterno é tão perfeito que não pode ter por causa 
senão deuses. Este argumento sobrevive na admiração que 
ainda hoje é suscitada pela ordem do mundo (basta pensar 
cm Einstein). Platão vê nela uma outra prova na primazia da 
alma sobre o corpo: se o corpo é movido pela alma, é porque 
{ -- ....... --
58 Que saber sobre Filosofia da Religião 
ele vem em segundo lugar. Nossas almas existiram, portanto, 
antes de abismar-se neste ou naquele corpo. Formuladas tais 
provas, Platão é o primeíro a praticar a teologia racional, ou 
a filosofia da religião, entendida como justificação argumen-
tada das grandes crenças da religião. 
Mas Platão não combate unicamente aqueles que con-
testam a existência dos deuses, ele incrimina aqueles que 
pensam que os deuses não se ocupam com os humanos. Isso 
equivale para Platão a acusá-los de indolência e negligência. 
Se os artesãos mais modestos se preocupam com suas obras, 
com mais forte razão esse será o caso dos deuses. Há, por-
tanto, uma providência. A questão de saber se os deuses são 
providentes ou não em relação a nós dominará a filosofia da 
religião depois de Platão e Aristóteles. Ela oporá os epicu-
reus, que vão tirar argumento da transcendência radical do 
divino para dizer que os deuses não se preocupam conosco, 
aos estoicos, que se apoiarão nos argumentos platônicos e em 
sua própria visão finalista do universo. 
Platão critica enfim aqueles que creem que os deuses 
existem e se ocupam de nós, mas que acham que eles se dei-
xam dobrar ou corromper por oferendas. Os deuses não têm 
necessidade de nossos presentes. Os que cometem a injustiça 
não podem conseguir seus favores através das orações ou das 
ofertas. O melhor culto que se pode prestar ao divino consis-
te em praticar a justiça. Não resta nenhuma dúvida aos olhos 
de Platão de que foi esse culto que Sócrates praticou melhor 
do que qualquer outro. Dessa forma, ele prefigurou uma re-
ligião que é antes de tudo moral. 
7. Aristóteles: a racionalização do divino 
e da tradição mítica 
59 
Aristóteles é o outro grande gigante do pensamento gre-
go. Ele marcou com seu pensamento a tradição da metafísica, 
mas, nos textos dele, que nos foram conservados, ele pouco 
falou da religião ou do divino tal como foi transmitido pela 
mitologia. Mas ele se serve da representação herdada do di-
vino para apresentar sua ideia de uma ciência dos primeiros 
princípios, que será chamada pela tradição de "metafísica". 
Podemos perguntar-nos, diz Aristóteles, se esta sabedoria que 
trata das primeiras causas pode ser uma possessão humana. 
Esta ciênciadas realidades primeiras seria, pois, de preferên-
cia, "divina", em dois belos sentidos que Aristóteles distingue 
expressamente (Metafisica, A, 2): 
1) essa ciência seria divina porque é ela que Deus possui-
ria (ele terá o conhecimento das causas primeiras); 
2) ora, na opinião corrente, diz-se também de Deus que 
ele é causa de todas as coisas e um princípio (ele seria assim 
o objeto dessa ciência). 
Portanto, a ciência metafísica é divina, tanto em razão de 
sua dignidade como de seu objeto (tendo por objeto as causas 
últimas, dificilmente ela poderá não tratar do divino). Nos tex-
tos fundadores de sua metafísica, Aristóteles nem sempre dirá, 
porém, que Deus constitui seu objeto privilegiado (falando de 
preferência dos primeiros princípios ou do ser enquanto ser), 
mas ele afirma em um texto do livro VI (E, 1) que a ciência 
que trata do divino e que ele chama aqui de "teológicà' é uma 
ciência "universal porque primeira": uma vez que ela trata do 
primeiro princípio de todos os seres, ao qual todos os outros 
sáo suspensos, pode-se dizer que ela trata de tudo o que existe. 
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60 Que saber sobre Filosofia da Religião 
A ciência primeira do princípio de todos os seres seria por isso 
mesmo a ciência universal de tudo o que existe. 
O que surpreende em Aristóteles é que seu enfoque do 
divino seja tão racional ou científico. Nele o divino é con-
siderado, à primeira vista, como princípio de explicação do 
movimento das esferas celestes. Um fragmento de seu De 
philosophia, perdido, diz que haveria, segundo ele, duas cau-
sas para a existência do divino: a regularidade dos astros e a 
divinação, isto é, a capacidade da alma de predizer o futuro. 
Se ele faz eco às Leis de Platão falando da constância dos 
astros, sua alusão à divinação, na qual Platão também via 
uma dispensação divina, concorda com a visão religiosa do 
mundo grego: em um mundo cheio da presença dos deuses, 
tudo pode ser considerado como um sinal divino. 
8. A metafísica do espírito 
Toda a "filosofia da religião" de Aristóteles encontra-se 
em um breve tratado que se tornou o livro XII, ou Lamb-
da, o qual os editores ulteriores denominaram sua Metafisica. 
Texto determinante porque nele se trata da concepção aris-
totélica do princípio do movimento dos astros (portanto, do 
divino) e, brevemente, da concepção que Aristóteles podia 
fazer-se da tradição mítica. 
Como no último livro de sua Física, Aristóteles mostra 
nesse texto que é necessário admitir a causalidade de um pri-
meiro motor, se quisermos explicar o movimento eterno dos 
corpos celestes segundo esferas perfeitas. Esse movimento 
eterno deve ter uma causa que também é eterna, o primeiro 
motor (literalmente, o primeiro movente). A causalidade que 
ele exerce não é "eficiente", porque ela não começou a certo 
4. O mundo grego 61 
momento, uma vez que é eterno o movimento a explicar. 
Sua causalidade depende muito mais da ordem da finalidade: 
as esferas giram porque elas imitam ou "amam" 0 primeiro 
motor. A causalidade, por assim dizer, não se exerce de cima 
para baixo, mas de baixo para cima. 
É importante notar que se trata aqui de um deus (porque 
esse primeiro princípio é o que se chama comumente "deus", 
observa Aristóteles) que é exigido pela razão ou pela filoso-
fia, de um "deus dos filósofos'', e não de um deus ao qual se 
poderia dirigir preces. O deus de Aristóteles só é exigido para 
explicar o movimento regular dos astros, por isso haverá tan-
tos deuses quantos movimentos regulares, isto é, 55. 
Aristóteles interrogou-se sobre a atividade do primeiro 
movente, do qual se sabe que deve ser um ato puro, porque 
toda dimensão de poder ou de passividade lhe é estranha. Se 
sua atividade deve ser a mais alta possível, só poderá tratar-
-se de uma atividade de pensamento. Mas o que ela pensará? 
Com certeza, o que há de mais nobre. Portanto, o primeiro 
motor não poderá senão se pensar a si mesmo. Pode-se daí 
concluir que Deus não sabe nada de nosso mundo. Seria uma 
humilhação para ele preocupar-se conosco (nessa acepção, os 
epicureus seguirão Aristóteles). Com isso Aristóteles lega à 
filosofia da religião uma herança decisiva: 
1) Ele afirma primeiramente a transcendência radical do 
primeiro motor em relação a nosso mundo. A ideia do Bem era 
transcendente em Platão, mas ela se encontrava em nosso mun-
do ("cheio de deuses", dizia Tales), do qual os deuses também 
cuidavam. Esse cuidado parece indigno do divino para Aristóte-
les. Portanto, Gadamer tem razão quando afirma que Aristóteles 
- que não cessa de criticar em seu mestre Platão a separação das 
ideias em relação a nosso mundo - talvez seja o verdadeiro pen-
sador da separação, quando propõe a soberana transcendência 
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62 Que saber sobre Filosofia da Religião 
do primeiro motor (Grondin, 2004, 113). Esta é uma questão 
importante para uma filosofia da religião: o divino é imanente 
ou rigorosamente transcendente a nosso mundo? Para Aristóte-
les, só pode, com todo rigor, ser transcendente. 
2) O outro legado capital consiste em pensar esse primeiro 
motor como um puro espírito pensando-se a si mesmo. Aristó-
teles funda por esse lado o que H. Kramer chamou de metafísica 
do espírito. Sem dúvida, a mitologia grega já associava a sabedo-
ria e a inteligência aos olímpicos. Mas a concepção aristotélica, 
mais ponderada, do divino como um pensamento do pensa-
mento (noesis noeseôs) tem importantes consequências. Ela su-
blinha não apenas que o divino é uma pura realidade espiritual, 
mas propõe que sua atividade por excelência é a do pensamento 
e, por conseguinte, da razão. Em princípio, Deus é considerado 
como razão suprema. Em Aristóteles, isso ainda não quer dizer 
que o mundo "decorre" do pensamento de Deus - como admi-
tirá Maimônides ou Leibniz - porque Deus não conhece nosso 
mundo. Mas, por aí, supõe-se em Deus, e em seu pensamento, 
um princípio de racionalidade última, donde surgirá mais tar-
de, nos epicureus, o problema filosófico da teodiceia: se Deus 
encarna a razão suprema, por que ele permitíu o mal? Em certo 
sentido, o ateísmo será uma resposta a este desafio: um mundo 
que autoriza o mal é incompatível com um Deus pensado como 
razão suprema, portanto Deus não existe. Aqui se encontra pres-
suposta a racionalidade integral do divino. 
9. A desmitologização de Aristóteles 
Aristóteles também fez época em filosofia da religião 
quando afirmou categoricamente que essa concepção ra-
cional do divino constituía o fundo de verdade da tradição 
63 
mítica. Assim ele praticou, antes do estado definitivo, uma 
"desmitologização" dessa herança, isto é, uma leitura crítica 
do mito que distingue nele um núcleo mais racional e o que 
depende da fábula, destinada às massas. Essa desmirologiza-
ção só se encontra em uma passagem do livro Lambda, mas 
é particularmente valiosa, se é verdade que toda filosofia da 
religião deve fazer um esforço de desmitologização; a saber, 
uma compreensão ponderada do que se trata no mito: 
Uma tradição transmitida da Antiguidade mais re-
mota, e legada, sob forma de mito, às épocas seguintes, 
ensina-nos que as primeiras substâncias são deuses, e que 
o divino abarca a natureza inteira. Todo o resto dessa tra-
dição foi acrescentado mais tarde, sob uma forma mítica, 
para persuadir as "massas" e para servir às leis e ao interesse 
comum [ ... ].Separando do relato seu fundamento inicial e 
considerado-o isoladamente, a saber, a crença de que todas 
as substâncias primeiras são deuses, então se pensará que 
isto é uma asserção verdadeiramente divina [ ... ].Tais são 
portanto as reservas sob as quais aceitamos a tradição de 
nossos pais e de nossos mais antigos antepassados (lvfetafi-
sica, 1074 b 1-14, Tricor). 
Essas reservas serão, em certo sentido, as de toda filosofia 
da religião. Ela se encontra diante de uma herança imemo-rial, na qual deve levar em conta o que pode ser admitido 
pela razão e o que só depende do mito. Mas deve-se notar 
aqui que o critério do que é racional no mito procede dele: 
foi ele que nos ensinou que o divino era transcendente e ser-
via de princípio a nosso mundo. 
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64 Que saber sobre Filosofia da Religião 
1 o. O impulso da filosofia da religião 
no helenismo 
As escolas pós-aristotélicas (ceticismo, epicurismo, estoi-
cismo) mantêm-se à sombra das grandes filosofias da religião 
de Platão e Aristóteles. As obras dessas escolas só foram trans-
mitidas de modo lacunar. Elas também não constituem um 
verdadeiro eldorado para a filosofia da religião, na medida 
em que as questões filosóficas da religião que permaneciam 
como tais bem periféricas em Platão e Aristóteles são nelas 
abertamente debatidas. Esses debates foram retomados pelos 
autores latinos, depois transmitidos à Idade Média e à moder-
nidade. Se Platão e Aristóteles forjaram os grandes conceitos 
metafísicos dessas escolas, é nelas que se pode encontrar o 
berço da filosofia da religião. 
As escolas do helenismo estão conscientes da distância 
que as separa dos filósofos clássicos, mas também da tradição 
mítica. É uma tradição que Platão e Aristóteles haviam criti-
cado. A fim de salvaguardar seu sentido moral, o estoicismo 
vai propor uma interpretação alegórica. Assim, a figura de 
Zeus - como nos ensina um dos raros fragmentos do estoicis-
mo antigo que foi conservado, o "Hino a Zeus'', de Cleanto 
- será vista como uma personificação da razão que governa 
a natureza e à qual é preciso submeter-se. Por meio dessa 
leitura alegórica, a filosofia fez uma reinterpretação racional 
e sistemática da herança mítica da qual ela procede. 
Porém, em um sentido mais profundo ainda, a filosofia 
e a religião mudam um pouco de estatuto no curso desse 
período: nelas a salvação pessoal do indivíduo se torna pre-
ponderante. Em todas as escolas, a filosofia busca não tanto 
penetrar os princípios do mundo, como em Platão e Aristó-
4. O mundo grego 65 
teles, mas assegurar a tranquilidade da alma (ataraxia) do in-
divíduo, passando-se a compreender a filosofia antes de tudo 
como uma busca de felicidade. Cada uma das escolas propo-
rá sua própria via e seus próprios "exercícios" espirituais, que 
têm por fim afastar o indivíduo das coisas que não podem ser 
mudadas e dirigir sua atenção para a realidade mais essencial. 
Essa transformação afeta a religião como tal, que passará a 
ter cada vez mais a tendência de apresentar-se como um ca-
minho que conduz à felicidade. Os historiadores da religião 
mostraram muito bem que se passou do helenismo de uma 
religião ritual e cívica, que ainda atribuía uma grande im-
portância aos sacrifícios animais, a uma religião mais voltada 
para o engajamento da pessoa e da fé. 
Essa interiorização da religião é crucial, pelo menos por 
duas razões: 
1) em um sentido essencial, pode-se dizer que aqui, e 
pela primeira vez, religião e filosofia se confundem: ambas de-
vem levar a uma forma de felicidade ou de salvação. Também 
não é por acaso que os Padres da Igreja verão na mensagem 
evangélica uma resposta à busca de sabedoria que é a filoso-
fia. Como essa resposta satisfaz todas as expectativas do ser 
humano, as outras vias que pretendem levar à sabedoria serão 
naturalmente condenadas como heréticas. Religião e filosofia 
terão de separar-se mais tarde ou até opor-se, mas algo de sua 
simbiose helenística subsiste quando esperamos que 0 filóso-
fo nos dê lições de sabedoria e que ele responda à questão do 
sentido da vida; 
2) essa tradição dos exercícios espirituais que deve condu-
zir à sabedoria, da qual tanto falaram P. Hadot e M. Foucault, 
conduz a um aprofundamento, talvez até a uma descoberta 
da interioridade, que será determinante para a sequência do 
pensamento ocidental e sua filosofia da religião. A religião se 
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1 
u 
&& Que saber sobre Filosofia da Religião 
tornará cada vez mais uma questão de crença ou de fé, isto é, 
de uma relação pessoal com o divino. A ritualidade, essencial 
a todas as religiões anteriores, vai tornar-se mais secundária 
ou se transformará em trabalho da alma sobre si mesma. Sem 
dúvida, as escolas de helenismo se oporão em suas concep-
ções do divino (que é providente para os estoicos e q.u~ não 
se ocupa de nós humanos para os epicureus) e da felicidade 
(a virtude para os primeiros, o prazer para os segund~s), ~as 
sua fusão da filosofia e da religião e sua descoberta da mteno-
ridade farão época na história do pensamento. 
5. O mundo latino 
1. A religião, uma palavra latina 
melhor resposta à questão de saber o que é a reli-
gião, a mais banal, consiste em dizer que se trata 
e uma palavra latina. O termo comporta diversos 
sentidos de grande valor e, mais importante ainda, autores la-
tinos de primeira categoria (entre os quais Cícero, Lactâncio, 
Agostinho e Tomás) se debruçaram sobre seu sentido e sua 
etimologia. 
1) O termo designa em primeiro lugar a obrigação e 
sobretudo a obrigação de consciência, o dever, a moderação. 
Em um célebre estudo, embora errôneo em certos pontos, 
Benveniste chamou a atenção para a expressão comum religio 
mihi est, que exprime o escrúpulo da consciência: para mim 
é um dever (uma "religião") não fazer isto ou aquilo, alguma 
coisa me impede de fazê-lo. 1 Agostinho se recorda desse sen-
tido fundamental quando diz em sua Cidade de Deus (1O,1) 
que no melhor latim (o que seus contemporâneos teriam es-
quecido ... ) o termo religio não é reservado ao culto de Deus, 
mas designa "o respeito devido ao que aproxima, ao que une 
os seres humanos", de sorte que se pode dar provas de "reli-
1 
E. Benveniste, Le vocabulaíre des ínstítutíons européennes, Minuit, 1969, t. 2, 270. 
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68 Que saber sobre Filosofia da Religião 
gião" diante de parentes e amigos. A religião exprime aqui o 
sentido do dever e da lealdade. 
Ora, o termo religio também aponta para o que funda ou 
motiva esta obrigação, a saber: 
2) A crença. A religio designa aqui o laço que une o ser 
humano com a divindade no sentido em que nós o enten-
demos, o sentimento religioso, a piedade. Vivendo em um 
império pluriétnico, no qual vários cultos eram praticados, 
os romanos sabiam no entanto que as crenças e os cultos 
eram múltiplos. Daí talvez a distância deles em relação ao 
religioso, que lhes permitiu formar o conceito de religio. Eles 
suspeitavam que diversas formas de crença eram puramente 
supersticiosas. Por isso o termo religio, em uma importante 
variante desse segundo sentido, designa muitas vezes em la-
tim a simples superstição. Quando se diz de alguém ou de um 
povo que ele agiu segundo uma "religião" particular (religione 
alíqua), muitas vezes se quer dizer que eles obedecem a algu-
ma crença supersticiosa (a dos gauleses, dos celtas etc.). Tam-
bém não é por acaso que um autor como Agostinho falará 
no título de uma de suas obras de juventude "Da verdadeira 
religião". A expressão pressupõe que existem religiões falsas. 
2. A religião segundo Cícero: a reler 
atentamente 
Autores latinos propuseram etimologias célebres do ter-
mo religio. Se podemos colocar em dúvida sua científicidade, 
seu sentido é importante para compreender a ideia de que os 
filósofo latinos podiam fazer da religião. 
Em seu De natura deorum (2, 71-72), Cícero (106-43) 
faz o termo derivar do verbo relegere, que quer dizer "reler" 
5. O mundo latino 69 
(e não, como o diz muito depois Benveniste, "recolher"). Cí-
cero distingue primeiro a religio da superstitio, mesmo se o 
latim, e inclusive o de Cícero, associa muitas vezes a religío à 
superstição. Mas a distinção pode realmente ser feita. 
Cícero explica o sentido da superstitio propondo uma eti-
mologia sem dúvida bem fantasista: "Chamou-sede supersticio-
sos (superstitíosi) aqueles que durante dias inteiros fazem orações 
e sacrifícios para que seus filhos lhes sobrevivam (superstites es-
sent) ".O superstis é a testemunha que sobrevive, o sobrevivente, 
do verbo superstare, "manter-se acima de". O supersticioso é, 
pois, aquele que está pronto para recitar todas as orações e fazer 
os sacrifícios na esperança de que seus filhos "sobreviverão". 
Segue o célebre texto que distingue a religio daqueles que 
podem ser chamados os religiosi, os "religiosos": "Ora, aque-
les que examinam com cuidado tudo o que se refere ao culto 
dos deuses e por assim dizer o 'releem' (qui autem omnia quae 
ad cultum deorum pertinerent diligenter retractarent et tam-
quam religerent), estes foram chamados religiosos". 
Nos dois casos, a superstição, como a religião, tem a ver 
com o culto dos deuses. Mas a grande e crucial diferença é 
que se chama "religiosos" aqueles que se dão o trabalho de 
examinar (retractare) com cuidado (diligenter) tudo o que se 
refere ao culto dos deuses e por assim dizer de "relê-lo" (tam-
quam relegerent). Todas essas palavras são importantes: 
Retractare é tocar de novo, portanto repassar em seu es-
pírito, revisar, retratar. 
Díligenter (com cuidado): advérbio importante, porque 
é justamente esta atenção que distingue, segundo Cícero, a 
religião da superstição: os religiosos abordam com circuns-
pecção essas questões, o que não fazem os superstitiosi. 
Relegere (reler): o termo é precedido de um tamquam 
instrutivo, "por assim dizer": os religiosos são aqueles que 
1 
1 
IJ 
70 Que saber sobre Filosofia da Religião 
estudam com cuidado essas questões e que por assim dizer 
as "releem". Reler é examinar com um cuidado redobrado. 
Pressente-se que o retórico Cícero examina aqui de perto o 
jogo de palavras, anunciado pelo tamquam, como o fez com 
superstitío, derivado de superstís, "sobrevivente". A sequência 
imediara do texto explica o sentido desse laço entre a religio e 
b t " l " o ver o re egere, o re er atento : 
" ... eles são portanto chamados religiosos, do verbo reler 
(ex relegendo), assim como elegantes vêm do verbo escolher 
(elegantes ex elegendo), diligentes do verbo diligere (tomar 
cuidado), inteligentes de intellegere (compeender) (ex intel-
legendo intellegentes)". 
A comparação estabelecida com outros termos derivados 
de legere é ainda mais clara porque todos esses termos com-
portam equivalentes: religião vem de reler (com diligência), 
elegante de eleger (escolher com cuidado) e inteligente de 
inteligir (apreender com atenção). Todas essas atividades de 
leitura ou de "escolhà' têm uma qualidade comum: 
"Podemos de fato encontrar em todas essas palavras 
a mesma capacidade de ler (ou de escolher)", his ením om-
nibus inest vis legendi eadem quae in religioso. A religião se 
distingue portanto (da superstição) por sua capacidade de 
ler atentamente e por conseguinte escolher (o que no culto 
depende da simples superstição e o que depende de uma 
reA.exão diligente). Assim, conclui Cícero, "os termos su-
persticioso e religioso se tornaram um deles pejorativo (no-
men vítii), o outro um termo de louvor (laudís)". 
A grande virtude da religião, que a distingue da supers-
tição, é que ela examina com cuidado, portanto ela "relê" 
5. O mundo latino 71 
(relegere), se podemos utilizar a expressão (e Cícero se mostra 
consciente do caráter um pouco forçado de sua explicação, 
porque ele a faz preceder de um tamquam), todas as coisas 
que se referem ao culto dos deuses. Se a superstição é um 
vício, a religião é um termo de louvor, porque ela procede 
de uma leitura e por conseguinte de uma escolha refletida e 
atenta. Dessa forma, a religião se caracteriza por sua relação 
refletida, prudente e ponderada com o culto dos deuses. 
Aqui três coisas merecem ser sublinhadas: 
1) ao contrário de um preconceito tenaz e sem cessar reto-
mado desde Benveniste, Cícero não diz aqui que religio vem de 
recolhimento ou escrúpulo (é Benveniste que interpreta o ter-
mo nesse sentido, apostando muito na expressão religio mihi 
est, à qual Cícero não faz alusão neste contexto). A religio pode 
exprimir o escrúpulo de consciência em latim, mas o texto do 
De natura deorum propõe uma outra explicação do termo, a 
qual pode a rigor fundar o escrúpulo de consciência: a religião 
nasce de uma "releitura" atenta e circunspecta (diligenter) das 
coisas divinas, como a que tem lugar em elegere (escolher), dili-
gere (tomar cuidado, amar) e intellegere (compreender); 
2) o outro preconceito obstinado pretende ver neste tex-
to uma "definição" da religião (como recolhimento ... ). Não se 
trata absolutamente disso: Cícero busca de preferência distin-
guir a religião da superstição, dizendo de uma que ela é idóla-
tra e da outra que ela é mais digna de respeito, porque consiste 
em uma releitura atenta, em uma leitura renovada (a ftequenti 
iectione), dirá Tomás de Aquino (ST I, q. 81), que, depois de 
Agostinho, apreenderá bem o sentido do texto de Cícero; 
3) por conseguinte, trata-se de uma concepção rigorosa-
mente filosófica da religião, defendida por Cícero: ele desconfia 
de uma retomada puramente supersticiosa dos cultos trans-
mitidos e disputa em favor de uma religião que depende de 
{ 
1 72 Que saber sobre Filosofia da Religião 
uma leitura ponderada das questões divinas. É uma maneira 
de dizer que a filosofia faz intrinsecamente parte da religião 
bem-compreendida. Uma "religião" sem filosofia permanece 
supersticiosa ou crédula. 
Se quisermos invocar uma definição da religião em Cí-
cero, é a do De inventione (2, 161) que devemos citar, aquela 
que também Tomás vai utilizar em sua Suma Teológica, se-
gundo a qual a religião é "o fato de preocupar-se com certa 
natureza superior que chamamos divina e de lhe prestar um 
culto" (religio est quae superiorís cuiusdam naturae quam divi-
nam vocant curam caerimoniamque ajfert). Mas esse cuidado 
(cura) e esse culto (caerimonía) devem basear-se, no caso da 
religião, em uma leitura atenta. 
Como ensina o tratado de Cícero sobre A natureza dos 
deuses, essa leitura atenta também é a que fazemos dos si-
nais divinos que a natureza nos prodigaliza. Em nome da 
confrontação ponderada das ideias, que corresponde a sua 
concepção e sua prática da filosofia, a obra é um diálogo que 
apresenta sucessivamente as concepções de um epicureu (Ve-
leio), de um estoico (Balbo) e de um cético (Cotta) sobre a 
natureza dos deuses: a questão que nesse diálogo é debatida é 
a de saber se os deuses, cuja existência geralmente é admitida, 
ocupam-se ou não com as questões humanas. O estoico Bal-
bo se apoia na prodigiosa finalidade da natureza para mostrar 
que isso é evidente, enquanto o epicureu Veleio acha que os 
deuses são justamente tidos como bem-aventurados e devem 
por conseguinte ser isentos desse cuidado, pois o mundo te-
ria sido feito só pela natureza. Cícero só revela na última li-
nha de seu diálogo que é a exposição de Balbo que lhe parece 
a mais próxima da verossimilhança. É que a propósito do 
divino não se pode esperar mais do que a verossimilhança. 
O estoicismo de Balbo e de Cícero (que se considera geral-
5. O mundo latino 73 
mente o mais próximo dos céticos) nomeia quatro causas da 
existência dos deuses: 
1) a primeira vem da previsão do futuro, a divinação; 
descobre-se uma grande quantidade de sinais divinos no 
mundo, mas que os humanos, às vezes, é verdade, interpre-
tam mal; portanto é a eles, e não aos deuses, que os erros da 
divinação devem ser imputados; 
2) em seguida, como ignorar os inúmeros beneficios dos 
deuses que proveem nosso bem? Eles são responsáveis por 
"nosso clima temperado, pela fertilidade da terra e pela abun-
dância de tantas outras comodidades" (2. 4. 12). A carne dos 
peixes é tão saborosa, dirá Balbo, que poderíamos quase dizer 
de nossaProvidência que ela é epicureia ... ; 
3) uma outra prova da existência dos deuses encontra-se 
nos prodígios naturais, como o raio, as tempestades, os terre-
motos e os cometas, que só podem ser atribuídos a potências 
superiores; 
4) a última causa, que também é a mais importante, 
é contudo "a regularidade do movimento e a revolução tão 
constante do céu, a singularidade, a utilidade, a beleza e a 
ordem do sol, da lua e de todos os astros: a visão dessas coi-
sas, por si só, mostra muito bem que elas não são devidas ao 
acaso" (2. 5.15). 
Todos esses fenômenos testemunham uma potência supe-
rior, porque eles não são obra do ser humano. Segundo Balbo, 
quem quisesse negá-lo seria completamente insano: "O que 
pode haver de mais evidente, quando olhamos para o céu e con-
templamos os corpos celestes, do que a existência de um poder 
divino, dotado de uma inteligência superior que os governa? [ ... J 
Se duvidamos disso, não consigo compreender por que não po-
deríamos também duvidar da existência do sol: de fato, em que 
esta última evidência é maior do que a primeira?" (2. 2. 4). 
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1 
IJ 
\ 
74 Que saber sobre Filosofia da Religião 
Sobre a questão central da providência dos deuses, Cí-
cero julga que a atitude dos estoicos parece mais sensata do 
que a dos epicureus: se os deuses não se ocupam conosco, 
como acreditam os epicureus, " o que vêm a ser a piedade e 
a observação escrupulosa dos deveres religiosos" que estão no 
fundamento da coisa pública? 
3. D laço religioso segundo Lactâncio 
Existe em latim uma outra etimologia do termo religio, 
combatida por Benveniste e sem dúvida porque ela se impôs 
no mundo cristão. É a etimologia proposta por Lactâncio (v. 
250-325), um apologeta cristão do século III, em suas Divi-
nae Institutiones III, 9. 
À diferença de Cícero, Lactâncio faz religio derivar do 
verbo religare: religar (ligare: ligar): "O termo relígio foi tira-
do do laço da piedade, porque Deus se liga (religaverit) ao ser 
humano e se ata a ele pela piedade". 
Aqui a ideia de laço é determinante e age nos dois sen-
tidos: o laço inicial vem de Deus, porque é ele que propõe a 
sua criatura uma aliança. A religião se torna então o "re-laço" 
de piedade que religa o ser humano a Deus. 
Muitas vezes a tendência é opor as duas etimologias. De 
fato, os autores medievais insistirão nisso, mas, no fundo, 
elas não se opõem necessariamente: o laço religioso (religare) 
pode muito bem fundar-se em uma leitura atenta (relegere), 
leitura que se baseia por sua vez no laço inicial entre o divino 
e os humanos. Agostinho dirá que prefere a etimologia de 
Lactâncio à de Cícero, mas ele insistirá na ideia de "re-laço", 
porque é um laço que o ser humano perdeu por sua própria 
negligência, cometendo o pecado original: importa portanto 
5. O m•do latino 75 
restabelecer esse laço, por conseguinte religar nossas almas só 
a Deus e abster-nos de toda superstição (Cidade de Deus, 1 O. 
3; Da verdadeira religião, 111; Revisões, 1. 13. 9). 
4. A síntese do platonismo e do cristianismo 
em Agostinho 
A obra de Agostinho (354-430), insubstituível para toda 
filosofia da religião, situa-se na encruzilhada de épocas e de 
civilizações decisivas: fortemente marcada por Cícero como 
pelo platonismo de Plotino e Porfírio, mas também pelo dos 
Padres como Orígenes, Jerônimo e Ambrósio, Agostinho terá 
sido a testemunha das primeiras invasões bárbaras e, portan-
to, dos primeiros sinais do declínio do Império Romano (sua 
Cidade de Deus tentará mostrar que a cristianização recente 
do Império não teve nenhuma influência nisso). Por conse-
guinte, sua obra se constrói na articulação da Antiguidade 
com uma época em que a modernidade chamará de medieval 
e que será dominada no Ocidente pela religião cristã. 
As Confissões (cerca de 399), sua obra mais célebre, mas 
que talvez não o tenha sido para ele ou seus contemporâneos, 
contam a palpitante história de sua conversão, na primeira 
pessoa, daí sua modernidade. A conversão de Agostinho se 
opera em várias etapas. 
1) Tudo começa por uma conversão à filosofia (Confissões, 
livro 3), tal como a entendiam Agostinho e a Antiguidade 
tardia. Agostinho a vive na idade de dezoito anos, influen-
ciado pela leitura do Hortensius de Cícero, que pretendia ser 
uma exortação à vida filosófica. A conversão a esse tipo de 
vida quer, pois, dizer que a pessoa deve desviar-se das vãs ocu-
pações e da glória temporais, para voltar-se à busca de uma 
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' 
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IJ 
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76 Que saber sobre Filosofia da Religião 
sabedoria (sophia) espiritual e eterna. A própria ideia de filo-
sofia, o amor à sabedoria, implica uma conversão (convertere: 
uma virada ou mudança instantânea e completa para alguma 
coisa). Mas essa sabedoria verdadeira "que os filósofos bus-
cam", Agostinho levou algum tempo para encontrá-la ou re-
encontrá-la, porque se trata da religião de sua mãe. Primeiro 
ele se deixou seduzir pela Igreja dos maniqueus, da qual foi 
membro durante dez anos. Mas, como ele diz, pelo menos 
duas coisas o levaram a distanciar-se dela: a ideia de que há 
em Deus um princípio do bem e do mal (como pode o mal 
ter sua fonte em Deus, que é a pura bondade?) e a concepção 
muito material que os adeptos de Mani se faziam da divinda-
de. Uma nova "conversão" tornou-se necessária. 
2) A conversão ao "platonismo" (livro 7). Agostinho conta 
que foi a leitura de "alguns livros dos platônicos", os quais ele 
não cita, mas que eram sem dúvida Plotino e Porfírio, que o le-
vou ao caminho da doutrina cristã. Ele diz que leu nesses autores 
uma passagem que é quase idêntica àquela que abre o quarto 
Evangelho(!), querendo assim mostrar a concordância de fundo 
entre o cristianismo e a filosofia dominante de seu tempo, o 
platonismo. Os platônicos o orientaram para a religião cristã, 
ensinando-lhe que Deus é a bondade pura e que ele não é uma 
coisa material, mas uma realidade espiritual e eterna, aquela que 
sua alma buscava desde sempre. Agostinho retoma também des-
1 d " . " ses platônicos a ideia de que a a ma eve entrar em s1 mesma 
se ela quiser descobrir essa realidade inteligível. Portanto, é pos-
sível uma visão intelectual da realidade divina, graças ao olho da 
alma que olha para o interior de si mesma. Só que essa visão dos 
platônicos os tornava talvez muito presunçosos. Eles esqueciam 
a humildade humana que Cristo, assumindo a carne humana 
(desdenhada pelos platônicos), quer lembrar-nos. Resta, pois, 
um outro limiar a ser transposto. 
5. O mundo latino 77 
3) A conversão pontual ao cristianismo (livro 8). Ela se 
opera em Agostinho em um momento preciso. Desde certo 
tempo ele se dedicava à religião cristã, mas suas tendências 
sensuais e a concupiscência da carne o impediam de aderir 
totalmente a ela. Ele ouve, então, uma voz em um jardim de 
Milão: tolte, lege, "toma e lê". Ele abre a Epístola aos Roma-
nos e seus olhos incidem exatamente na passagem que diz: 
"Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não vos preocupeis em 
satisfazer os apetites da carne". Trata-se, certamente, de um 
sinal divino. Agostinho renuncia imediatamente às tentações 
da carne e decide fazer-se batizar na próxima Páscoa. A con-
versão decisiva vem acompanhada de uma renúncia à carne 
(o que também é mais ou menos platônico) e da aceitação 
de uma vida de continência. Mas, ao se converter, isto é, ao 
des-viar-se (devertere) da carne para dedicar-se inteiramen-
te a Deus, Agostinho participará pela primeira vez do rito 
"iniciático" da Igreja católica, o batismo, que o purificará de 
seus pecados. O elemento ritual continua sendo importante, 
embora o essencial seja a conversão interior. 
As "três" conversões formam por conseguinte uma só: a 
conversão filosófica bem-compreendida já consiste em des-
viar-se da carne para consagrar-se somente às realidades eter-
nas, aquelas exaltadas pelo platonismo,mas é o cristianismo 
que encarna sua verdadeira revelação. O que importa aqui, 
porém, não é só a conversão: com a conversão de Agostinho, 
pode-se dizer que é todo o Ocidente latino que se converterá 
à filosofia da religião cristã. 
É essencial notar que a religião (cristã) se apresenta aqui 
como uma resposta à busca de sabedoria e de felicidade que 
é a busca da filosofia. Portanto, religião e filosofia caminham 
lado a lado e se confundem. A primeira linha do De vera re-
ligione, de 390 (composto pouco tempo depois da conversão 
1 
I 
78 Que saber sobre Filosofia da Religião 
de Agostinho em 389), claramente o lembra: "O caminho da 
vida feliz [buscado por todas as escolas filosóficas] não é outro 
senão a verdadeira religião". Em outras palavras, poderíamos 
dizer que não há vida boa e feliz sem verdadeira religião. Mas 
também é importante notar que Agostinho fala aqui da "ver-
dadeira" religião, porque só há uma. A prova de que a religião 
cristã é realmente a verdadeira, Agostinho o percebe em sua 
universal difusão (Da verdadeira religião, 3. 3). Se o próprio 
Platão estivesse vivo e lhe fizéssemos a pergunta sobre a ver-
dadeira religião, ele responderia que a religião de seus votos 
tinha chegado com o cristianismo. Também teria reconhe-
cido facilmente que a pregação sublime do cristianismo não 
podia vir de um homem, mas somente de uma iluminação 
divina, como a que se revelou em Cristo. Só a religião cristã 
cumpriria o ideal (platônico) de uma renúncia aos bens des-
se mundo e de uma conversão à realidade imutável. Aqui a 
conversão é compreendida, segundo o modelo de Plotino, 
como um retorno da alma, que se extirpa do múltiplo, para 
retornar ao Uno. 
Essa filosofia da religião estará no centro da Doutrina 
Cristã (397, terminada em 427) de Agostinho. Segundo o 
estoicismo, a obra distingue dois tipos de bens: os bens dos 
quais nos servimos (utenda) em vista de um outro bem e 
aqueles dos quais usufruímos por si mesmos (fruenda, de 
frui) e que constituem por conseguinte um fim em si mes-
mos. Toda coisa é um bem que remete a um outro bem. Só 
o Bem supremo, o soberano Bem, não remete a outra coisa. 
Portanto, ele é o único de que se deve "fruir" por ele mesmo. 
A doutrina cristã, compreendida como filosofia, no sentido 
forte do termo, ensina-nos como chegar à verdadeira felicida-
de: devemos somente "usar" deste mundo, e não fruir dele, a 
fim de "contemplar os bens invisíveis de Deus, que as coisas 
5. O mundo latino 79 
criadas nos fazem compreender". A partir das realidades fí-
sicas e temporais, somos, pois, capazes de apreender as reali-
dades eternas. Para chegar lá, Deus nos ofereceu um modelo, 
a própria Sabedoria, identificada à segunda pessoa da Trin-
dade. Ela se adaptou a nós, assumindo nossa condição, mas 
justamente para ajudar-nos a transcendê-la. Essa sabedoria já 
estava sem dúvida presente ao olho interior, Agostinho não 
dá o braço a torcer nesse ponto, mas para aqueles cujo olho 
está doente ela dignou manifestar-se aos olhos da carne. Para 
nos curar, ela nos deu um mandamento de amor, que nos 
ordena amar nosso próximo, mas sobretudo amar a Deus de 
todo o nosso coração e de toda a nossa alma. Quer dizer que 
Deus deve ser amado acima de toda coisa. Deus e a realidade 
inteligível constituem a via da felicidade, a resposta à busca 
filosófica da alma. 
A Cidade de Deus ( 413/427) dirá, então, que "o verdadei-
ro filósofo é aquele que ama a Deus (8. 1), isto é, a sabedoria 
pela qual tudo foi feito. Mas como a filosofia assim nomeada 
(como sabedoria) não existe, longe disso, para todos aqueles 
que se gloriam desse nome, é preciso escolher quais são os 
filósofos que melhor falaram dela: "Se, pois, para Platão, o 
sábio é aquele que imita, que conhece, que ama este Deus e 
encontra sua felicidade em participar de sua vida, que neces-
sidade tem ele de examinar outros filósofos? Nenhum deles 
está mais próximo de nós do que os platônicos" (8. 5). Tam-
bém teria sido Platão que introduziu a divisão da filosofia em 
três partes: a física, a moral e a lógica (divisão que na verdade 
é posterior a Piarão). A física busca a causa da existência e da 
natureza, a moral investiga a regra de vida e a lógica a razão 
da inteligência, que permite distinguir o verdadeiro do fal-
so. Nos três casos, Platão coincide com o sentido que, para 
Agostinho, é este: é o cristianismo que traz a melhor resposta 
1 
{ 
1 
80 Que saber sobre Filosofia da Religião 
e sempre a mesma: o Deus imutável é de fato o pri~cípio 
eterno do mundo em contínua mudança, a regra de vida e a 
luz da inteligência. 
Se a filosofia toma aqui uma feição religiosa que responde 
a sua busca de sabedoria, a própria religião é compreendida 
como uma filosofia. Aproximando-se uma à outra, religião e 
filosofia acabam por fundir-se. O desafio das épocas vindou-
ras será pensar ou repensar a separação das duas. Mas a sínte-
se agostiniana delas continuará sempre atrativa: se a filos~fia 
tiver de separar-se da filosofia da religião ou até mesmo tiver 
de criticar radicalmente a religião em nome da filosofia, ela 
terá uma melhor sabedoria a propor, portanto, um melhor 
caminho que conduz à felicidade. 
&. O mundo medieval 
1. Duas fontes do saber 
concepção que se convencionou chamar Idade Mé-
dia faz dela uma época "medíocre" (daí seu nome, 
·nspirado na Renascença e na modernidade), en-
feudada à religião católica, de tal forma que ela se teria carac-
terizado por uma repressão de toda forma de saber autônomo. 
Na Idade Média a filosofia e a religião certamente se teriam 
fundido, mas essa simbiose teria sido uma catástrofe, tanto 
para a filosofia como para o ser humano. A modernidade de-
veria então ser compreendida como uma emancipação do ser 
humano de sua tutela religiosa. Por ser caricatural, essa visão 
é honrosa para a filosofia da religião, porque ela reconhece a 
todo um milênio da história humana o mérito de ter sido defi-
nido por uma "filosofia da religião", a que admite que a religião 
responde a todas as verdadeiras inquietações do ser humano. A 
modernidade pode, portanto, apresentar-se a si própria como 
a gloriosa libertação da religião e desse período sombrio da 
história. Mas isso equivale a dizer que a modernidade, por sua 
vez, define-se por uma "filosofia da religião", mesmo que seja 
crítica, o que é uma outra honra para a disciplina. 
Em todo caso, essa visão deve muito a certo agostinismo, 
porque a fusão da filosofia e da religião, que se quer denun-
1 
( 
1 
j 
1 
82 Que saber sobre Filosofia da Religião 
dar, é própria a Agostinho, apesar de Agostinho se valer aqui 
de Platão (e de Plotino). Esse paradigma agostiniano da filo-
sofia da religião terá efetivamente desempenhado um papel 
importante na Idade Média. 
Mas ele não terá sido o único, e, sobretudo, toda a pai-
sagem filosófica da "Idade Médià' não terá sido cristã. Longe 
disso. Podemos encontrar o testemunho mais patente disso 
nas impressionantes sínteses dos pensadores muçulmanos Al-
Farabi (por volta de 870-950) e Averróis (1126-1198), que 
ignoram os aurores cristãos como Agostinho, o que também 
é verdade do Guia dos perplexos do pensador judeu Maimô-
nides (1135-1204). Ora, todos esses autores têm o cuidado 
de mostrar que a religião deles, o islã ou o judaísmo, estão de 
acordo com a "filosofià', compreendida a partir de suas dis-
ciplinas fundamentais como a lógica, a ética ou a metafísica, 
ela mesma pensada de maneira teológica. Portanto, o hori-
zonte de pensamento também continua teológico, mas ele 
é fértil para uma filosofia da religião, porque a preocupação 
primordial desses pensadores continua sendo a possível con-
ciliação entre filosofia e religião. Isso pressupõe que existam 
duas fontes de conhecimento, a revelação e a razão. 
Os três gigantes do mundo islâmico são ávidos leitores 
de Aristóteles,cuja obra já estava então inteiramente tradu-
zida para o árabe (inclusive alguns textos que não são mais 
reconhecidos hoje como sendo de Aristóteles, como o Lívro 
das causas, evidentemente neoplatônico), enquanto só seus 
escritos lógicos eram conhecidos do Ocidente latino e cris-
tão. Todos eles são fascinados pelo rigor da filosofia racio-
nal de Aristóteles e por sua explicação física do mundo. Eles 
também têm o cuidado de defender os alicerces das ciências 
racionais: se Deus nos dotou de razão, é para que a utilizemos 
e não para abafá-la ou extingui-la. Eles acham então que o 
83 
estudo das ciências filosóficas deve não somente ser tolerado 
pelo islã, mas também incentivado. Alguns autores islâmi-
cos como Al-Gazali (1058-1111) expressarão seu desacordo 
e vão querer pôr um fim a esse embelezamento filosófico. 
Al-Gazali é at~tor de uma obra sobre A incoerência dos filósofos 
(1095, traduz1da para o latim sob o eloquente título Destruc-
tio phUosophorum), na qual ele se declara contra Aristóteles 
e Al-Farabi, mas sobretudo contra Avicena. Al-Gazali não é 
hostil a todas as ciências filosóficas, porque ele considera a 
lógica e a matemática indispensáveis e se mostra até disposto 
a tolerar a ética e a física dos filósofos. Mas é extremamente 
crítico em relação à metafísica, porque julga que ela trata, e 
de maneira incoerente, de questões às quais só a religião pode 
responder. 1 
2. A filosofia da religião de Averróis 
e de Maimônides 
Averróis lhe responde em seu tratado sobre A incoerência 
da incoerência (1180, Destructio destructionís) como em seu 
Discurso decisivo, agora já bem conhecido, graças à tradução 
de~· C~eoffroy (GF, 1996) e celebrado como obra-prima do 
racton~ltsmo muçulmano. O Discurso decisivo é uma fatwa, 
um aviso legal sobre a questão de saber "se o estudo da filo-
sofia e das ciências da lógica é permitido pela Lei revelada ou 
se é condenado por ela, ou até prescrito, seja como recomen-
dação ou como obrigação" (DD, 1). Para Averróis, 0 ato de 
filosofar consiste simplesmente no "exame racional dos seres 
e no fato de refletir sobre eles enquanto constituem a prova 
' U. RuooLPH, lslamische Philosophie, Munique, Beck, 2004. 
J 
( 
84 Que saber sobre Filosofia da Religião 
da existência do Artesão". O desígnio dos filósofos confunde-
-se a esse título com o da revelação. Sendo assim, não deveria 
haver contradição entre os dois. Pode haver simplesmente 
aparência de antagonismo entre o sentido literal do Corão e 
a análise demonstrativa. As regras de interpretação têm por 
tarefa revogar essa contradição, contanto que haja "consenso 
entre os muçulmanos", afirma ousadamente Averróis, "para 
considerar que nem todos os enunciados da revelação devem 
ser tomados em seu sentido literal". Mas por que a revelação 
comporta enunciados cujo sentido deve ser compreendido 
de maneira literal e outros devem ser entendidos de maneira 
mais alegórica? É que os seres humanos se distinguem por 
suas disposições inatas. Se existem enunciados que são con-
tradi rórios no sentido literal, "é a fim de assinalar aos seres 
humanos uma ciência profunda que convém interpretar". Mas 
nem rodos são capazes de compreender esse sentido oculto: 
"A revelação compreende o aparente e o oculto, mas não é 
necessário que os que não possuem ciência conheçam o ocul-
to". Averróis propõe uma análise sutil dos tipos de enunciados 
que são suscetíveis dessa interpretação e das classes de pessoas 
que estão em condições de compreendê-los. Daí resulta que 
existe uma diferença entre as "pessoas de demonstração" e 
aquelas que têm necessidade de satisfazer sua imaginação (a 
massa), mas nem todos estão dispostos por natureza a apre-
ender demonstrações. Ora, a única grandeza do texto revela-
do é dirigir-se ao mesmo tempo a todos os tipos de crentes. Se 
a revelação se preocupa "com o maior número", ela também 
não omitiu "dispensar sinais em favor da elite" (52). 
A primeira herança dessa filosofia da religião, que será 
prolongada por Maimônides e Spinoza, consiste em afirmar 
que há de facto uma dupla verdade da revelação: uma verdade 
para a massa e uma verdade que só os filósofos são capazes 
6. O mundo medieval 85 
de penetrar, pela análise racional (que não é acessível a todo 
mundo,. como se reafirma). Essa ideia será combatida pela 
~rtod~x1a muçulmana, que restabelecerá a dignidade do sen-
ttdo literal do Corão. 
A outra grande herança, que aproxima Al-Farabi, Avicena 
e Averróis, consiste em reconhecer não somente a legitimida-
de, mas também a autonomia das ciências filosóficas e de sua 
explicação racional do mundo. O Corão deve concordar com 
a razão, mas, ~e houver conflito entre os dois, é o texto sagrado 
que deve ser interpretado em um sentido que está de acordo 
c~m ª,razão. A tarefa da "filosofia da religião" consiste aqui, 
e isto e bem novo (ainda que preparado por séculos de inter-
pretação alegórica), em mostrar em que a religião, ou o texto 
sagrado, pode concordar com os ensinamentos da razão. 
Portanto, há para Averróis e os autores medievais que 
dele se valerão mais ou menos expressamente dois tipos de 
saber: de um lado, as ciências filosóficas, fundadas na razão 
natural; de outro, a religião revelada por textos proféticos, 
cujo sentido literal se dirige sobretudo às massas. É que a 
filosofia permite aos mais avançados que se façam uma me-
lhor ideia da essência divina. Percebe-se aí sem dúvida cerro 
elitismo, porque nem rodos são dotados para a metafísica, 
mas temos o direito de saudar a tolerância que representa essa 
visão de uma coabitação possível entre duas vias que condu-
zem à verdade, a qual só pode ser única. 
Mas será que pode haver duas vias que conduzem à ver-
dade? Pode a razão humana entrar em concorrência com a sa-
bedoria diretamente revelada por Deus? É toda essa questão 
que está à origem do "conflito" entre a razão, ou a ciência, e a 
religião, que será o palco de todas as controvérsias da filosofia 
~a religião, e muito além da Idade Média. Basta pensar em 
Kant, que se esforçará para propor uma filosofia da religião 
( 
1 
1 
86 Que saber sobre Filosofia da Religião 
dentro dos limites da simples razão (1793), mas ele o fará 
desvalorizando, no espírito do Iluminismo, a importância da 
revelação histórica, o que certamente nenhum autor medie-
val podia permitir-se. Se os três grandes pensadores muçul-
manos, e Maimônides para o judaísmo, jamais colocam em 
questão a verdade, nem a autenticidade de suas revelações, 
eles apresentam uma versão delas que é fortemente influen-
ciada pela filosofia e mais particularmente pela metafísica 
gregas, que faz de Deus uma essência eterna e um ato puro, 
que é antes de tudo responsável pelo movimento perfeito das 
esferas celestes. 
Maimônides pressupõe essa concepção, mas ele rejeita o 
dogma da eternidade do mundo em nome da ideia judaica 
da criação. Sua concepção metafísica do divino o leva a in-
terpretar em um sentido puramente espiritual todas as pas-
sagens da Torá que parecem atribuir propriedades ou ações 
sensíveis a Deus. Se dizemos de Deus, por exemplo, que ele 
está "sentado", não é para dar a entender que ele tem um cor-
po, 0 que seria ímpio, mas para exprimir sua estabilidade e 
sua permanência, pois Deus é rigorosamente estranho a tudo 
que é corporal. Ora, o comum dos mortais associa a noção de 
existência à existência corporal (Guia dos perplexos, 6 I, 100). 
A razão nos ensina que isso seria um contrassenso para Deus. 
Portanto, o combate da irreligião é tomar em um sentido li-
teral os textos que falam de Deus de maneira sensível. Mas a 
dificuldade vem do fato de que a própria linguagem humana 
é sempre corporal, portanto inapta a exprimir a essência de 
Deus, cujo tipo de existência é completamente diferente do 
nosso. Também devemos precaver-nos de dar nomes ou atri-
butos a Deus, os quais sempretrarão a marca de nossa lingua-
gem corporal. A única maneira de falar dele é, portanto, falar 
negativamente: os verdadeiros atributos divinos são aqueles 
&. O mundo medieval i 87 
em que a atribuição se faz por meio de negações, quando 
se diz de Deus que ele não é corporal, que não há nada de 
múltiplo nele, que não existe nenhuma semelhança entre seu 
tipo de existência e o nosso etc. Quanto mais multiplicamos 
as negações a propósito de Deus, mais nós aproximamos de 
sua essência. O único nome de Javé, aquele que ele se deu 
a si mesmo ao revelar-se a este ser dotado de um entendi-
mento superior que era Moisés, resume-se em quatro letras 
(YHWH), que exprimem "o ser necessário". Ideia metafísica, 
sem dúvida, já elaborada por pensadores como Al-Farabi e 
Avicena, mas que Maimônides enriquece de atributos tirados 
da revelação profética. Esta nos ensina que Deus é generoso, 
equitativo e justo, e não somente na sábia organização das 
esferas celestes, mas também na ordem que de sua inteligên-
cia se "expandiu" até a terra e que nos ajuda a conhecê-lo. 
O motivo, neoplatônico, da expansão (jeidh, 275) está oni-
presente: é por esse transbordamento que Deus, como uma 
fonte, deu origem às esferas celestes e ao nosso mundo. Sua 
revelação aos profetas, por meio dos anjos, deve também ser 
compreendida como uma expansão de sua ciência. Toda essa 
revelação só tem por finalidade levar o ser humano a realizar 
sua verdadeira perfeição ou seu fim último, isto é, a percep-
ção de Deus ~ o conhecimento das realidades inteligíveis ou 
metafísicas. E por aí que ele obtém a imortalidade (633). 
Platão coincide aqui com Moisés. 
Os perplexos aos quais se dirige o Guia de Maimônides 
são as pessoas religiosas perfeitas em sua religião e seus cos-
tumes, que estudaram a fundo as ciências filosóficas e são 
conduzidas pela razão, mas que poderiam ser confundidas 
pelo sentido exterior da Lei. Esse sentido literal pode jogá-
-las na agitação e no desvio. Por conseguinte, o tratado de 
Maimônides tem por finalidade eliminar, na medida do pos-
( 
1 
1 
1 
88 Que saber sobre Fiiosofia da Religião 
sível (porque ele contínua sempre consciente dos limites da 
inteligência humana quando tenta compreender o divino), 
essas obscuridades e proceder de tal modo que o ser humano 
religioso não seja induzido a erro por elas. 
3• A virtude da religião segundo Tomás de 
Aquino 
Al-Farabi, Avicena e Averróis foram bem cedo esque-
cidos no mundo muçulmano, antes de serem redesco-
bertos, graças à renascença muçulman~ do fim do sé~ulo 
XIX. Seus herdeiros imediatos, se assim podemos dizer, 
encontram-se sobretudo no mundo ocidental e latino, q~e 
Permaneceu até aquele momento bem refratário, na este1-
b · 1 " - " aliás ra de certo agostinismo, ao sa er rac10na pagao , . 
malconhecido. A partir do século XIII, os ilustres leito-
res cristãos das novas traduções dos autores árabes e dos 
textos de Aristóteles (Alberto Magno, Tomás de Aquino, 
Duns Scotus, Guilherme de Ockham, Mestre Eckhart) 
restabelecerão a reputação desse saber racional. A exem-
plo dos autores árabes, eles jamais colocarão em questão a 
verdade de sua revelação, mas terão o cuidado de m~strar 
que ela está de acordo com a razão. Sua visão mais racional 
do mundo, inspirada em Aristóteles e em certo neo~la~o: 
nismo herdado dos pensadores muçulmanos, contnbutra 
para o progresso da ciência moderna e, conseque~te~~n-
, i·a de uma atitude filosófica mais cnuca te, para a emergenc 
em relação à religião. . . 
Aqui é impossível fazer justiça à infinita diversidade da 
filosofia da religião dos aurores medievais, porque todas as 
questões das quais eles trataram, em abundantes corpus, 
&. O mundo medieval 89 
atingem de perto ou de longe a "religião" (Deus, a fé, o pe-
cado, a graça, os anjos etc.). Deveríamos tratar aqui do argu-
mento ontológico de Anselmo, das cinco provas da existência 
de Deus, da concepção que se faz da essência e da onipotên-
cia de Deus, mas poderíamos fazer valer que essas questões 
dependem muito mais da metafísica propriamente dita (ver 
Grondin, 2004, 133-171), isto é, da explicação racional dos 
primeiros princípios, dos quais se pode distinguir a "religião", 
entendida como culto rendido a uma potência superior que 
chamamos divina. 
Aliás, é nesse sentido que Tomás fala da religião em uma 
seção bem longínqua da Summa Iheologica, no segundo vo-
lume de sua segunda parte (2a 2ae, q. 81-91), em que trata 
das grandes virtudes. Portanto, Tomás trata da religião mui-
to tempo depois de ter falado de Deus e da própria fé (na 
primeira parte). Seu conceito de religião é mais regional do 
que o de Agostinho, por exemplo; porém, mais próximo da 
religião compreendida como culto crente. 
Para o leitor de hoje, dizer da religião que ela é uma 
"virtude" não é nenhuma evidência. Tomás segue Aristóteles 
vendo na virtude um habitus, isto é, um arranjo, uma dispo-
sição "que aperfeiçoa o ser humano para fazê-lo agir bem" ( 1 a 
2ae, q. 58, art. 3). Para Tomás, há três virtudes intelectuais (a 
sabedoria, a ciência e a inteligência), quatro virtudes morais 
(a prudência, a justiça, a temperança e a fortaleza) e três vir-
tudes teologais (a caridade, a fé e a esperança). Contra toda 
expectativa, a religião não faz parte das virtudes teologais, 
mas das virtudes morais, porque ela é compreendida como 
uma virtude anexa à justiça. É que o objeto das virtudes teo-
logais é Deus enquanto ele ultrapassa nossa razão. A religião 
não tem Deus diretamente por objeto, mas o culto que o ser 
humano presta a Deus. 
r-
i 90 Que saber sobre Filosofta da Religião 
Aliás, a primeiríssima referência de Tomás será a defi-
nição dada por Cícero, segundo a qual "a religião apresenta 
seus cuidados e suas cerimônias a uma natureza de ordem 
superior que se chama divinà' (2a 2ae, q. 81). Tomás desen-
volve então três etimologias do termo que ele julga essenciais 
à compreensão da virtude da religião: 
Reler. Tomás retoma aqui a etimologia de Cícero: o ser 
humano religioso é aquele que repassa e, por assim dizer, diz, 
relê (retractat et tamquam relegit) o que concerne ao culto 
divino. Se religião vem de "relire", é que se deve voltar a ela 
muitas vezes no coração. A religião decorre aqui da leitura 
frequente (frequenti lectione). 
Re-eleger. É uma etimologia que Tomás retoma da Cida-
de de Deus, de Agostinho: como Deus é o Bem supremo que 
foi abandonado por nossa negligência, devemos re-elegê-lo, 
escolhê-lo de novo. 
Religar. A religião exprime enfim "nossa ligação com o 
Deus único, todo-poderoso" (segundo a etimologia da Lac-
tâncio, não nomeado aqui). 
Leitura renovada, escolha reiterada do que foi perdido 
ou ligação vertical, a religião exprime no sentido próprio a 
ordem a Deus (ordo ad Deum). A virtude da religião é então 
a que ordena todo agir para com ele que nos impele a reler 
sua Palavra, a escolhê-la livremente e a nos ligar a ele. Ela se 
traduz por duas espécies de atos: os atos de religião que serão 
interiores, estes são os principais, ou exteriores e secundários. 
Os atos interiores são os da devoção e da oração, enquanto 
os atos exteriores compreendem a adoração, os sacrifícios, 
as oblações, os dízimos, em suma, tudo o que oferecemos a 
Deus. É evidente que Deus não tem necessidade de nossas 
oferendas, nem de nossas orações. Se prestamos honra e re-
verência a Deus, não é por ele mesmo, porque ele está cheio 
<~l8R•lll11Jfí!llll!llllll!lll &. O mundo medieval 91 
de uma glória à qual a criatura nada pode acrescentar. Nós 
o fazemos sobretudo para nós mesmos, a fim de lhe sujeitar 
nosso espírito e encontrar nele nossa perfeição, porque "to-
das as coisas só encontram sua perfeição na submissão ao que 
lhe é superior". Ora, nós temos necessidade de ser guiados 
pelo sensível. Por isso o culto divino requer o uso de realida-
des corporaiscomo outros tantos sinais "capazes de despertar 
na alma humana os atos espirituais pelos quais nos unimos a 
Deus" (q. 81, art. 7). Esta é a "filosofia da religião", no senti-
do subjetivo do genitivo. 
Em Aristóteles a virtude representa um justo meio en-
tre dois extremos. O mesmo se dá com a virtude de religião 
em Tomás. Ela encarna um justo meio entre os dois excessos 
que são a superstição e a irreligião. A superstição é um ex-
cesso, porque ela presta um culto divino ao que não deve ser 
o objeto desse culto, ou ela o faz de uma maneira indevida. 
A irreligião exprime por sua vez uma falta de religião: ela se 
traduz pela irreverência para com Deus, que acontece quan-
do se procura tentar a Deus ou colocá-lo à prova, quando se 
comete um perjúrio ou se utiliza seu nome sem respeito. É 
de notar que o ateísmo não faz parte das formas de irreligião 
estudadas por Tomás. Ele só se tornará possível com a filoso-
fia da religião da modernidade. 
( 
1 
1 7. O mundo moderno 
um truísmo dizer que o conflito entre a religião e a 
razão, aparente nos Padres da Igreja como também 
em Averróis e Maimônides, exercerá um papel crítico 
na filosofia da religião da modernidade. E servirá até para defi-
ni-la, no sentido em que, para alguns, a modernidade não seria 
nada mais do que uma libertação do jugo da religião que seria 
substituída pela ciência. No sentido de Augusto Comte, o esta-
do científico (e moderno) da humanidade deveria distinguir-se 
de seu estágio teológico ou religioso. Aqui, a religião encontra-se 
inteiramente identificada com a superstição, da qual Cícero e 
Tomás ainda a distinguiam, em nome de uma desmitologização 
radical, da qual a modernidade oferece múltiplos exemplos. 
Quando começa a modernidade? Os anglo-saxões a asso-
ciam à emergência da ciência experimental em Bacon ou às 
descobertas astronômicas de Copérnico e Galileu, enquan-
to os continentais pensarão de preferência em Descartes e 
os historiadores na Renascença italiana ou na descoberta do 
Novo Mundo, sem esquecer a Reforma Protestante. As daras 
importantes são bem conhecidas: invenção da imprensa por 
Gutenberg, em 1450; descoberta da América, em 1492; apa-
recimento do De revolutíoníbus, de Copérnico, em 1546; do 
Novum Organum de Francis Bacon, em 1620; e do Discurso 
do método de Descartes, em 1637. 
1 
I -
94 Que saber sobre Filosofia da Religião 
Se Bacon e Descartes se distanciam de Aristóteles e de sua 
metafísica, é difícil falar com referência a eles de uma crítica 
radical da religião ou de seus temas diretivos. Isso continuará 
valendo para a grande maioria dos autores que são associados 
aos começos da modernidade. Para convencer-se disso basta 
lembrar o propósito de suas obras básicas: Descartes publica 
em 1641, em latim, suas Meditações de filosofia primeira nas 
quais são demonstradas a existência de Deus e a imortalidade da 
alma. Poderia tratar-se de um título medieval. Pascal (1623-
1662) trabalhava, por sua vez, em uma obra que devia tratar 
da "superioridade da religião cristâ', enquanto Malebranche 
(1638-1715) apresentou na Busca da verdade uma metafísi-
ca em que deviam "ser estabelecidas as principais verdades 
que são o fundamento da religião e da moral". Essa intenção 
metafísica prosseguirá nos sistemas racionalistas de Leibniz 
(nada é sem razão e Deus é a razão suprema) e Spinoza (o pri-
meiro axioma de sua Ética é que Deus é a causa de si mesmo, 
cuja essência implica a existência). Mesmo que esta tradição 
chamada racionalista exalte a razão, é difícil associá-la a uma 
morte de Deus ou a uma crítica radical da religião. Bem ao 
contrário. 
Os germes dessa crítica se encontram sobretudo em uma 
outra tradição da modernidade, muitas vezes identificada ao 
empirismo, mas cujas raízes são medievais. O método ex-
perimental de Bacon deve efetivamente muito ao antiessen-
cialismo do nominalismo, que aparece nos pensamentos de 
Ockham e de Buridan. O nominalismo inscreve-se em uma 
tradição que insiste muito na onipotência de Deus e que re-
monta a Pedro Damião ( 1007-1072) e sua Carta sobre a oni-
potência divina. Mas se Deus pode tudo, ele não poderia ser 
limitado por uma ordem de essências que seria constrange-
dora para ele e à qual ele deveria conformar-se. Para o nomi-
7. O mundo moderno 95 
nalismo, as essências não são, em princípio, senão realidades 
"nominais", abstratas da experiência e criadas pelo espírito. O 
que existe realmente são só os indivíduos. O conhecimento 
muda então de objeto: não trata mais das essências, segundas 
e derivadas, mas dos dados contingentes e singulares da ex-
periência. O saber empírico que daí tiramos não é universal 
como o saber de essência dos medievais (esta é sua fraqueza), 
mas é pelo menos verificável e permite previsões confiáveis. 
É em nome desse saber experimental que Bacon criticará os 
vãos ídolos do espírito (idola mentis). 
Antes de tudo, esse nominalismo não diz respeito à re-
ligião como tal. Mas conduzirá, passo a passo, a uma crítica 
da religião em um autor como Hume e nos pensadores do 
Iluminismo (Helvécio, Diderot, Voltaire). É que a religião 
aparece cada vez mais como uma simples criação do espírito, 
da qual dirá Hobbes (1588-1679), em seu Levíatá (cap. 12), 
que ela nasce do medo da morte e do desejo do ser humano 
de conhecer as causas. Ora, esse conhecimento não depende 
muito mais da ciência como tal? 
Dois deslocamentos silenciosos, mas tectônicos, operam-
-se aqui: 1) a religião é cada vez mais percebida como uma 
questão interior, até mesmo privada, dependendo unicamente 
da convicção. Certamente isso já era evidente para Agostinho, 
mas a modernidade insistirá sobretudo no caráter "fictício", 
fabricado, dessa convicção; 2) compreendida a partir do medo 
da morte e da vontade de compreender as causas, ela continua 
sendo considerada como uma forma de "saber", mas um saber 
"fi " raco , se comparado com o da ciência, e por conseguinte sua 
legitimidade poderá ser colocada em questão, embora o seja 
ainda bem pouco no começo da idade moderna. 
Mas não são esses os únicos deslocamentos importantes. Há 
um outro, preparado de longa data, mas que tomará um aspecto 
1 
---------------- -~-
96 Que saber sobre Filosofia da Religião 
crítico. É que a filosofia da religião da modernidade, radicalizan-
do uma distinção antiga, dissociará cada vez mais duas formas 
de religião: a religi.ão natural, na maioria das vezes fundada na 
ordem da natureza, da qual se infere a existência de um Artesão 
supremo, e a religião histórica, estatutária e institucional, que se 
autoriza numa revelação, mas cujas prerrogativas políticas serão 
facilmente contestadas. Essa distinção deve muito à sacudida 
provocada pela filosofia da religião de Spinoza. 
1. Spinoza e a critica à Bíblia 
Nascido em Amsterdã, Spinoza (1632-1677) é um ju-
deu, oriundo de uma família portuguesa, que entra bem 
cedo em contato com seitas protestantes mais libertárias, o 
que lhe vale ser excomungado de sua comunidade judaica em 
1657. Em 1670 aparece anonimamente seu Tractatus theolo-
gico-politicus, que lançou a "crítica à Bíblià'. A obra provoca 
escândalo e é objeto de um interdito em 1674. Seu propósito 
é defender a liberdade de filosofar, como o diz seu título inte-
gral: "Tratado teológico-político contendo algumas disserta-
ções nas quais se faz ver que a liberdade de filosofar pode não 
só ser concedida sem perigo para a piedade e a paz do Estado, 
mas também porque não se pode destruí-la sem destruir ao 
mesmo tempo a paz do Estado e a própria piedade". 
É preciso defender essa liberdade contra aqueles que acre-
ditam que ela deve ser tutelada pelos teólogos que se valem 
da Escritura. Spinoza explica seu propósito em uma carta de 
outubro de 1665 a Oldenburg (carta 30): 
Ocupo-me no presente a compor um tratado no qual 
exporei minha maneira de vera Escritura. Os motivos que 
me fizeram empreender esse trabalho são: primo, os precon-
7. O mundo moderno 97 
ceitos dos teólogos: a meu ver o ma1· . d' 
d 
' or impe imento 
po e haver ao estudo da filosofia por i r que 
, 1 ' sso esrorço-me para 
torna- os manifestos e para desembaraçar deles o , . 
d h - espmto 
os umanos nao muito cultos· secundo . ·-d . ' ' a opm1ao que tem 
e mim o povo: as pessoas não se cansam de acu d 
, sar-me e 
ate1smo e sou obrigado a consertar, na medida do poss' l 
o erro que me atribuem; tertio, meu desei'o de der d ive' d . ren er por 
to os os meios a liberdade de pensamento e d 1 
'd d e pa avra que 
a auron a e excessiva atribuída aos pastores e . . sua mve1a 
ameaçam suprimir neste país. 
A intenção de Spinoza é mostrar que ha' d . . d h · ois ttpos e 
con ec1m~nto de Deus e que eles são de natureza com le-
tamenre diferente: o conhecimento racional que , l p d" · ' e caro e 
tstmto, e o conhecimento fundado em l -ai uma reve açao à 
qu se ade~e pela fé e que pressupõe que o crente não tem 
~sse c;nhec1mento filosófico. Se Averróis já distinguia essas 
uas ~~mas de conhecimento do divino, jamais lhe ocorreu 
~ espm~o colo~ar em questão a autenticidade da revelação. 
,~m Spmoza, isso se tornará possível e em pouco tem 
coisa comum. po 
Portanto, o conhecimento de D fi d d 
- d eus un a o na revela-
çao epende de um mediador ou de um " e ,, O fi . proreta . ra, 0 
~ro eta t~ansmtte uma interpretação da revelação que ele rece-
eu, servmdo-se das imagens que p d' . e , 0 iam ser compreendidas 
~ sua epoca. O profeta é então "aquele que interpreta as 
coisas revel~das por Deus a outras pessoas incapazes de ter 
u~ conhecimento certo das coisas reveladas, e que por isso 
nao podem apreendê-las, a não ser somente pel C'" As . M · ' d. d D a 1e . sim, 
S o1:es iz e eus que ele é um fogo ou que ele é ciumento. 
e nao temos o conhecimento de Deus so' p d d. , o emos crer no 
;ue IZ Moisés. Ora, os profetas comam coisas bem dife-
entes quando eles recorrem a imagens para falar de Deus: 
' 1 98 Que saber sobre Filosofia da Religião 
"Não vamos surpreender-nos se encontrarmos na Escritura 
[ ... ] que Miqueias viu Deus sentado, Daniel sob a forma de 
um velho vestido de branco, Ezequiel como um grande fogo, 
nem que os discípulos de Cristo viram o Espírito Sant,o des-
cendo como uma pomba, os apóstolos sob a forma de l~ngu~s 
de fogo, que Paulo, enfim, por ocasião de sua conversao, vm 
uma grande luz. Toda essas visões concordam ylen:mente 
com as imaginações vulgares sobre Deus e os espmtos ( Trac-
tatus, I, 45). 
Entretanto, não poderíamos tomar essas imagens, sen-
síveis e materiais, como representações do própr~o D_e,us, 
concebido pela luz natural como um ser imat~nal. So o 
contexto histórico permite compreender o sentido dessas 
imagens utilizadas pelos profetas. S~i~oza luta, p.or:a.nto, 
em favor de uma interpretação decididamente historica e 
crítica da Escritura. . 
Ele também não mantém, por prudência ou por convic-
ção, a ideia de que a Escritura constitui uma revelação divina. 
Deus reria ele mesmo decidido revelar-se aos profetas. Mas 
estes adaptaram seus relatos às representaç~es de sua época. 
Ora, é preciso interpretar a Bíblia como se mter~reta a n~tu­
reza isto é, a fim de tirar dela leis universais. A lei que Sp1~0-
za t:ra da Bíblia é que toda a intenção da Bíblia é conduzir os 
humanos à piedade. É evidente que os profetas tiverarr_i ~~ le-
var em conta preconceitos daqueles aos quais eles se dmgiam 
para incitá-los à piedade e à devoção. Mas .e~sas represent~­
ções são datadas e tanto mais fáceis de relanvizar por~ue sao 
' . N-o podemos confundi-las com um conhecimento sensiveis. a 
racional de Deus que não necessita de imagens. _ 
A intenção de Spinoza é estabelecer uma separaçao ~s­
trita entre o conhecimento de Deus que depende da r~zao 
natural e o conhecimento da Escritura que é histórico. E, se 
1.0-.. ....... 
1 99 
quisermos, uma crítica da religião históric _J • . 
. , a ua maiorem Det 
rz;loriam, mas tambem para a glória da própr· fil fi . 
< ta oso a, CUJa liberdade se trata de defender. A conclusão de S · 
, . , . ptnoza, ao 
mesmo tempo reolog1ca e polmca (daí o título) , -
, e que nao 
poderíamos colocar a filosofia sob a tutela do teólogo. Mas 
ao defender com tanto vigor a autonomia da filosofia, Spinoza 
acaba por minar a autoridade do texto sagrado, em nome 
de um outro conhecimento de Deus, o da razão. Embora 
Spinoza insista em dizer que as representações dos profetas 
eram necessárias a sua época para levar as pessoas à piedade, 
é fácil descobrir que é possível criticar as representações dos 
profetas a partir do conhecimento que se pode ter de Deus 
pelo entendimento. Essa concepção, que inaugura a crítica 
racional da Bíblia, prefigura a de Kant em A religião nos limi-
tes da simples razão (1793). 
2. A religião moral de Kant 
Como herdeiro do Iluminismo, Kant distingue a religião 
estatutária, histórica e particular, da religião universal, que 
pode ser obtida pela razão humana. Uma das originalidades 
de sua filosofia da religião é de não fundar essa fé racional 
em um conceito de Deus tirado da ordem da natureza, mas 
de deduzi-la da lei moral inserira no coração de todo ser hu-
mano. 
I. A crítica do conhecimento metafísico Em sua Crítica 
da razão pura, de 1781, Kant desconstruiu toda pretensão da 
rnetafísica a um conhecimento suprassensível. Crítica bem 
conhecida, mas que muitas vezes é confundida com uma crí-
tica da religião como tal. Sem dúvida existe nesse caso um 
r 
1 
1 oo Que saber sobre Filosofia da Religião 
mal-entendido, mas o amálgama da metafísica e da religião 
fará época: os positivistas que se valerão de Kant, tanto no 
século XIX como no século XX, verão espontaneamente em 
sua censura do conhecimento metafísico (ou suprassensível) 
uma crítica de toda forma de religião, se é verdade que esta 
se dedica ao "suprassensível". Ora, o que Kant invalida é a 
pretensão de conhecimento da metafísica. A crítica dele é de 
uma simplicidade percuciente, que explica em parte sua no~ 
toriedade: 0 grande defeito da metafísica, segundo Kant, _e 
justamente ser meta-física. Ela pretende aduzir um conheci-
mento de realidades que não podem ser dadas em nenhuma 
experiência. Mas como validar esse tipo de saber? Ar~, no~a 
ordem, todo conhecimento só pode basear-se na expenencia. 
Mas isso não é, para Kant, o fim de toda forma de metafísica, 
nem 0 fim da religião, porque ambas se valem da evidência 
das leis morais. 
II. O que me é permitido esperar?- Em um célebre texto, 
Kant evoca as três grandes questões da razão, que são também 
as da filosofia: O que posso saber? O que devo fazer? O que 
me é permitido esperar? Se a primeira, diz ele em uma carta 
a Sraudlin (1793), depende da metafísica, a segunda da mo-
ral, a terceira pertence à religião, compreendida aqui, o que 
pouco importa, como disciplina com todos os direitos da 
filosofia. A resposta à primeira questão, a do saber, remet~­
-nos ao domínio exclusivo da experiência e de suas condi-
ções de possibilidade. A resposta à segunda questão nos faz 
lembrar o nosso dever: faze o que deves fazer! O apelo ao 
dever, seja ele cumprido ou não, ensina-nos que .º m~tivo 
de nosso agir não é unicamente nosso bem-estar ime~1ato, 
mesmo que se trate de um motivo forte e premente. E ~ue 
podemos também agir (pelo menos em princípio, e este pnn-
7. O mundo moderno 101 
cípi~ b.asta pa~a ~ant) em função de leis morais, que têm 
por umc~ fim indicar-nos como podemos tornar-nos dignos 
de ser felizes. A pessoa se torna digna de ser feliz confor-
mando-se ao imperativo da moralidade que prescreve agir 
em função de máximas suscetíveis de serem erigidas em leis 
universais e que fazem inteira abstração de nossa felicidade 
pessoal. Como se tratade uma lei que a razão se atribui a 
si mesma, Kant sublinha fortemente a autonomia do agir 
moral, pelo qual o ser humano se distingue das outras cria-
turas do mundo natural e se assemelha ao criador divino 
(é que por essa autonomia ele escapa do reino heterônomo 
da causalidade natural e participa do mundo inteligível ou 
racional, da ordem moral). Mas esse agir moral e autônomo 
deve ser desinteressado, se não ele deixa de ser puramente 
moral. Mas, pergunta-se Kant, e é este o sentido da terceira 
questão, se ajo de maneira a tornar-me digno da felicidade, 
posso esperar ter parte nela? Essa esperança é legítima, julga 
Kant, e fundamenta a filosofia da religião. A esperança que 
aqui está em vista se baseia no acordo entre a moralidade 
de minha conduta e a felicidade futura que poderá ser-me 
outorgada. Esse acordo corresponde ao que Kant chama o 
ideal do soberano Bem, o Summum Bonum do qual já ha-
viam falado Cícero e Agostinho, como do termo último de 
todo agir humano. Para Kant, esse acordo entre a moral e a 
felicidade só pode ser assegurado pelo sumo Bem originá-
rio, isto é, por Deus, pensado como o arquiteto da ordem 
moral do mundo. O sumo Bem esperado por nossa razão 
implica, portanto, admitir a existência de Deus e a imorta-
lidade da alma, que Kant apresentará ora como artigos de 
fé, ora como consequências necessárias da lei moral. Dessa 
forma, a moral desemboca na religião: "A lei moral conduz, 
pelo conceito do soberano Bem como objeto e meta final 
J 
r 
102 Que saber sobre Filosofia da Religião 
da razão pura e prática, à religião, isto é, leva a reconhecer 
todos os deveres como mandamentos divinos" .1 
Portanto, é possível elaborar uma doutrina puramente 
filosófica da religião. É o sentido preciso de A religião nos 
limites da simples razão, de 1793. Seu propósito é mostrar 
que a razão pode desenvolver, a partir dela mesma, uma 
doutrina da religião que é preciso distinguir da doutrina de 
uma religião revelada, cuja legitimidade Kant não contesta 
abertamente, mas dá a entender que ela tem o inconve-
niente de ser histórica e, portanto, contingente, e de ser 
reservada exclusivamente aos sábios da Escritura. A dou-
trina filosófica da religião pode provocar, por sua vez, uma 
pretensão à universalidade, porque ela está inscrita no cora-
ção de cada um e se apoia unicamente na razão moral. Em 
princípio, esta se basta a si mesma, mas a religião lhe traz 
um complemento, talvez até um apoio muito importante, 
mas que não se pode compreender, a não ser a partir das 
premissas particulares de Kant. 
A razão nos ordena agir unicamente em função da lei 
moral. Tarefa árdua para o amor próprio do ser humano, 
sempre tentado a desviar-se dessa lei na ocasião. Por conse-
guinte, ele coloca o amor de si mesmo acima da lei moral, 
o que equivale a uma perversão da lei moral. Essa perver-
são corresponde ao que Kant chama "mal radical" da alma 
humana. Mesmo sendo radical, porque enraizado em uma 
tendência, o ser humano pode esforçar-se para resistir ao 
mal desenvolvendo sua disposição original ao Bem, ao qual 
ele é chamado pela lei moral. Por isso, diz Kant, pode-se 
admitir que um modelo de perfeição foi proposto ao gênero 
humano para dar-lhe força e coragem em sua conversão ao 
' E. KANT, Critique de la raíson pratique, em Oeuvres phí/osophíques, tomo 2, 765. 
7. O munc10 DIOClerno 1 103 
Bem. Esse modelo, que corresponde a Cristo , 
'e para Kant 
o modelo de uma humanidade agradável a D . 
eus, tsto é 
moral. Portanto, para Kant, Cristo é o arquétipo d · ' 
_ am~~ 
çao moral em toda a sua pureza. Kant insiste bem 
, pouco 
no fato de que esse modelo foi proposto por uma reli i-
h. , . . 1 g ao istonca parncu ar, porque não está aqui seu obJ'eto 
. . , mas 
insiste mais na ideia de que há aqui um ideal a realizar· 
. ape-
sar da perversão de seu coração, o ser humano pode esperar 
ser agradável a Deus. Mas ele não pode conseguir isso, a 
não ser por seu agir moral. 
É por isso que Kant distingue dois tipos de religião: a 
religião cultuai, que busca favores, e a religião moral, exclusi-
vamente fundada na boa conduta, a única que é agradável a 
Deus. Kant julga que todas as ações cultuais são vás, porque 
elas se propõem "dirigir em sua vantagem o poder invisível 
que rege o destino dos humanos" (Religion, 276). Mas isto é 
pura ilusão: "Tudo o que o ser humano pensa que pode fazer, 
exceto a boa conduta, para tornar-se agradável a Deus, é sim-
plesmente ilusão religiosa e falso culto a Deus" (269). É só 
por nosso agir moral que podemos esperar tornar-nos dignos 
da felicidade que só Deus pode dispensar. 
III. Posteridade A Religião de Kant não é a obra mais 
revolucionária ou a menos austera no corpus da filosofia da 
religião, mas a posteridade do momento kantiano terá sido 
enorme para a disciplina. 1) Kant fez época em primeiro lu-
gar por sua destruição da metafísica. Ele certamente não vi-
sava senão à pretensão da metafísica a um conhecimento su-
prassensível, mas o amálgama colocou a própria religião na 
defensiva: será que ela pode manter-se face à ciência? Kant 
abre assim, quer queira ou não, a época positivista na qual 
tudo que depende da metafísica ou da religião se encontra 
{ 
104 Que saber sobre Filosofia da Religião 
desconsiderado como superstição, em nome da ciência. 2) 
Embora as premissas tão rigoristas da ética kantiana não 
tenham sido retomadas tais quais, a insistência de Kant na 
autonomia da razão moral foi bem-sucedida a sua maneira. 
Kant compreendia a religião como uma consequência ou 
um complemento da moral. Ora, a moral que ele defendia 
baseava-se na ideia de autonomia. Pensada até as últimas 
consequências, uma ética da autonomia pode, ou até deve, 
prescindir da religião. Portanto, torna-se possível uma ética 
sem religião: se a razão humana só é responsável pelo agir 
moral, o ser humano poderá constituir um fim em si mes-
mo. O "humanismo" que daí decorre terá cada vez mais 
a tendência de substituir a religião nas sociedades chama-
das modernas ou secularizadas. 3) A depreciação kantiana 
do culto e da experiência religiosa como tal (associada por 
Kant a uma forma de Iluminismo), em nome da religião 
moral fundada exclusivamente na boa conduta, certamente 
se inscrevia em uma tendência própria ao Iluminismo. Mas 
ela era tão intratável que acabou levando a certa reabilitação 
da experiência religiosa como tal. Será essa uma das contri-
buições de Schleiermacher. 
3. A intuição do infinito em Schleiermacher 
A modernidade reduziu habitualmente a religião a uma 
fraca forma de saber ou a um apêndice da moral. O que se per-
deu nesse caso foi a autonomia da religião. Foi para salvaguar-
dá-la que F. Schleiermacher (1768-1834) - apenas alguns anos 
depois do escrito de Kant sobre a Religião e na encruzilhada 
do romantismo e do idealismo alemães - debruçou-se sobre a 
essência da religiãçi. O subtítulo de seus Discursos sobre a reli-
7. O mundo lllOdemo I 105 
rsião (1799) anuncia que ele se dirige "às pessoas ul 
L e tas, entre 
as quais as que a desprezam". Se alguém a despreza ' 
, . , . ' e porque 
esta equivocado sobre sua essenc1a, confundindo-a, por falta 
de cultura, com o que ela não é. Schleiennacher desconfia so-
bretudo da redução (kantiana) da religião à moral, que ele jul-
ga deletéria para as duas: para a moral, porque apresentando 
a moral como tendo necessidade de apoio mostra-se que se 
acredita muito pouco em sua autonomia e no progresso moral 
da humanidade; mas também para a religião, porque não se 
faz caso do estado de alma que lhe é específico. A religião não 
depende do conhecimento ou do agir, mas antes do sentimen-
to ( Gefüh~ ou da intuição. Se a metafísica quer explicar o uni-
verso e a moral, o acabamento ou a perfeição, a religião busca 
por sua vez "intuicionar" o universo. O termo alemão para essa 
intuição,Anschauung, comporta um momento de passividade, 
mas também de admiração, e pressupõe que o objeto intuicio-
nado age sobre nós. Ser tomado pela intuição do universo é 
descobrir que tudo o que é particular é apenas a parte acabada, 
finita, de um todo ou do infinito: ''Apresentar os fatos que se 
produzem neste mundo como ações de um deus é exprimir 
sua relação com a infinidade de um todo, e isto é religião" (De 
la religion, 31). A religião em si não é mais do que a parte de 
um todo, porque há diversas maneiras diferentes, mas todas 
igualmente piedosas, de considerar as coisas sob o ângulo reli-
gioso, isto é, como fazendo parte de um todo mais abrangente. 
Declaração surpreendente da parte de um teólogo protestante, 
mas que associa a religião à mais alta forma de tolerância (laço 
que nem sempre é feito, é o mínimo que se pode dizer). Como 
não pode ser confinada a um sistema, a religião, fundada em 
um sentimento que tem algo de indizível, abre-se a todas as 
formas de intuição do infinito: "Vede que bela modéstia, que 
tolerância amável e acolhedora brotam do conceito de reli-
1 
r· 
106 Que saber sobre Filosofia da Religião 
gião". Esta tolerância leva Schleiermacher a relativizar todos 
os dogmas e os aspectos estatutários das religiões particulares, 
inclusive as próprias noções de Deus e da revelação: "O que 
chamamos revelação? Toda intuição original e nova do univer-
so é uma delas, e cada um é mais apto que qualquer outro para 
saber o que é original e novo para ele" (34, 65). O que importa 
na religião não são seus objetos particulares, mas a intensidade 
do sentimento e da intenção da qual ela surge. Em sua Dogmá-
tica cristã de 1821 (§ 4), Schleiermacher diz que a religião se 
funda em um sentimento de dependência total: "O que há de 
comum às formas mais diversas da piedade e o que as distingue 
de todos os outros sentimentos, em outras palavras, a essência 
constante da piedade está no fato de que temos consciência 
de nós mesmos como sendo absolutamente dependentes ou, 
0 que quer dizer a mesma coisa, que temos consciência de nós 
mesmos em relação a Deus". 
Não se pode subestimar o alcance do momento Sch-
leiermacher em filosofia da religião. Seu mérito foi antes de 
tudo ter redescoberto a autonomia do religioso e, em segui-
da, ter aclamado sua extraordinária diversidade, intuição da 
qual se aproveitará a história comparada das religiões. Ele 
fez isso, sem dúvida, ao preço de uma subjetivização radical, 
denunciada por pensadores como Hegel e Karl Barth, que 
alegam que ela reduzia a religião a uma simples questão de 
sentimento, mas ele permitiu a seus herdeiros, como R. Ütto 
(O Sagrado, 1917) e, indiretamente, W James (lhe Varieties 
of Religious Experíence, 1902), falar da experiência religiosa 
corno tal, considerada desde então como mais fundamental 
que seus objetos, todos tributários de seus contextos históri-
cos e por conseguinte relatívisáveis. 
1
•
0
--......... 1 107 
4. A sistematização filosófica da religião 
em Schelling e Hegel 
Com Fichte, que se inspirou em Kant para fazer uma 
Crítica de toda revelação (1792), Schelling (1775-1854) e 
Hegel (1770-1831) são os grandes pensadores sistemáticos 
do idealismo alemão. É impossível fazer-lhes aqui plena jus-
tiça, mas podemos dizer que eles foram os primeiros, depois 
de Kant, a elaborar sob este nome verdadeiras filosofias da 
religião. O Hegel da maturidade deu cursos magníficos de 
"Filosofia da religião" em Berlim (publicados depois de sua 
morte), onde o último Schelling, por sua vez, deu lições de 
"Filosofia da revelação" e de "Filosofia da rnitologià'. Mas o 
tema atravessa todos os pensamentos deles. Com seu amigo 
Hõlderlin, eles estudaram a teologia no decorrer dos anos 
1 790, no seminário de Tübingen, então inflamado pelas duas 
revoluções do momento, a kantiana e a francesa. Compu-
seram então um "fragmento de sistemà', no qual apelavam 
para seus votos de uma "religião sensível" e uma "mitologia 
da razão". O fato é que a razão, a moral e a religião kantianas 
continuavam abstratas demais aos olhos deles: elas deviam 
encarnar-se na cultura de todo um povo e da própria his-
tória, então em efervescência. O ideal deles era o ideal de 
uma religião universal da humanidade, mas que se cumprisse 
no mundo real. Seus sistemas totalizantes buscam, portanto, 
pensar um espírito que se encarne no real e uma realidade 
que seja penetrada pelo espírito. Compreende-se que a reli-
gião tenha exercido sobre eles uma força poderosa de atração 
ou até que ela tenha estado à origem de suas sínteses especu-
lativas: o propósito deles é de fato pensar o Absoluto (nada 
menos) e mostrar que ele é efetivo. O modelo da Encarnação 
1 
r 
108 Que saber sobre Filosofia da Religião 
terá exercido aqui um papel-chave, porque ele ensina que 
Deus escolheu por si mesmo encarnar-se na natureza e na 
história. Portanto, a história pode ser pensada como uma re-
velação do absoluto (uma "teodiceia da razão", dirá também 
Hegel), no duplo sentido do genitivo: é ela que nos revela 
o absoluto, mas é também nela que o absoluto se revela a si 
mesmo. É só impregnando e determinando toda realidade 
que o espírito demonstra sua absolutidade. A religião que 
celebra essa espiritualidade do real pode ser saudada como o 
"domingo da vida". 
Se Hegel tem uma ideia tão elevada da religião é que ele 
acha, em sua terminologia tão exigente, que ela é a consci-
ência de si mesmo do espírito absoluto, no duplo sentido, 
mais uma vez, do genitivo: se é por ela que o ser humano, 
tomando consciência do espírito que o anima, pode elevar-se 
ao infinito e dar permissão a sua particularidade, é através das 
religiões determinadas que o próprio espírito se torna cons-
ciente de si mesmo. As religiões são então compreendidas 
como as etapas ou as estações do espírito tornando-se cons-
ciente de si mesmo. Assim, para Hegel, elas não nasceram de 
maneira contingente, mas são "determinadas pela natureza 
do próprio espírito, que abriu uma passagem no mundo para 
entregar-se à consciência de si mesmo" (Hegel, 55). Passa-
gem necessária, porque é esta história que gerou o conceito 
de religião (e assim conduz o espírito a si mesmo). Para ele, o 
cristianismo encarna o cume e a revelação desse conceito. 
Se a religião prepara dessa maneira o "saber absoluto" do 
filósofo, Hegel julga que a filosofia é superior à religião, por-
que a religião continua prisioneira de representações sensíveis, 
sem dúvida indispensáveis ao ser humano, mas inadequadas 
em última instância para pensar a ideia do absoluto, uma vez 
que esse pensamento não pode desenvolver-se plenamente 
7. O mundo moderno 109 
: não .ser no elemento do conceito. Em sua última filosofia, 
Schellmg criticará, por sua vez essa filosofia do · ' conceito que 
continua sendo "negativa", a seus olhos: aqui a filosofia não 
chegaria a sair do elemento do conceito e a pensar 0 absoluto 
~e maneira positiva, isto é, tal como ele se coloca a si mesm 
E por isso que a filosofia negativa, ou puramente conceitua~· 
deve ser substituída por um pensamento que se abre à ma~ 
nifestação do absoluto por ele mesmo, tal como ele se dá na 
revelação e na mitologia. 
5. As críticas da religião após Hegel 
Essas sínteses especulativas, muito mais audaciosas de-
pois da censura kantiana da metafísica, suscitaram uma re-
~ç~o contrária imediata, que foi ora religiosa, ora antirre-
h~10sa. A reação religiosa do pensador dinamarquês Soren 
K1erkegaard retoma a crítica que o último Schelling dirigia 
a Hegel, a de continuar preso ao elemento do conceito e da 
totalidade abstrata, mas lhe dá uma nova dimensão: um tal 
sistema faria abstração da decisão religiosa na qual se encon-
tra imersa a existência. Ao primado hegeliano da totalidade 
e do conceito, mas também da filosofia, Kierkegaard opõe o 
primado da existência individual, de sua angústiae da deci-
são que lhe incumbe. Essa radicalização da problemática da 
existência não conhecerá sequências, a não ser no século XX, 
com Barth, Rosenzweig, Jaspers, Heidegger e Levinas, e con-
duzirá em todos esses autores a uma importante renovação 
da filosofia da religião. 
Mas a reação filosófica que fez tanto barulho depois de 
Hegel foi amplamente antirreligiosa (permanecendo ao mes-
mo tempo fortemente messiânica). Essa reação se serviu de 
1 
' 11 o Que saber sobre Filosofia da Religião 
uma categoria eminentemente hegeliana para estigmatizar a 
alienaçáo que a religião representaria para a consciência hu-
mana. A reação mais célebre é a de Marx, que vê na religião 
o "ópio do povo": uma ideologia que nasceu da miséria so-
cial, que visa consolar, mas que dependeria de uma projeção, 
aquela que foi denunciada por Feuerbach, quando ele disse 
que o ser humano atribuía ao divino propriedades humanas 
das quais deveria reapropriar-se, e aquela que será de novo 
atacada por Nietzsche, quando ele proclamará, não sem dor, 
a morte de Deus em Gaia Glência (Cai Savoir, 125). No en-
tanto, é preciso notar que Marx reconhecia uma função crí-
tica positiva à religião quando ele falava de sua dupla face: 
"A miséria religiosa é ao mesmo tempo a expressão da miséria 
real e o protesto contra a miséria real". A religião encerra, por-
tanto, um potencial utópico, evocando um mundo melhor 
a vir que o marxismo promete transformar em realidade: "A 
religião é o suspiro da criatura atormentada, a alma de um 
mundo sem coração, assim como ela é o espírito (!) de situa-
ções desprovidas de espírito. Ela é o ópio do povo". 2 
Costuma-se sublinhar muito pouco que essa ideia de 
ópio tinha algo de positivo no contexto do século XIX. O 
ópio era naquele tempo uma droga chique, reservada às pes-
soas elegantes e às classes abastadas que buscavam um prazer 
real. Marx não diz da religião que ela é o álcool ou a cerveja 
do povo ... A religião encarna, portanto, algo de refinado, de 
sutil, de "espiritual", em um mundo sem espírito. Mas seu 
2 K MARX, Critique de la philosophie du droit de Hegel, Aubier, 1971, 53. Muitas 
vezes se esquece de que a fórmula bem conhecida de Marx já tinha sido antecipada 
por Kant, mas em sentido ligeiramente diferente: Kant fazia alusão ao reco.~forto 
que um padre pode trazer a um moribundo que se aflige com dores de consc1enc1a 
por causa da vida que levou. Kant reprova então o padre por querer apaziguar, 
pelo ópio, a consciência moral dos agonizantes (Opium fürs Gewissen: Religion, 
155), em vez de aguçá-la, lembrando-lhe o austero exame ao qual ela nao poderia 
esquivar-se, mesmo em sua última hora. 
7. O mundo moderno ; 111 
prazer, seu bem-estar é ilusório. Por conseguinte, Marx exige 
sua supressão ou sua transfiguração: "A abolição da religião 
enquanto felicidade ilusória do povo é a exigência de sua feli-
cidade verdadeira. Exigir que se renuncie ~s ilusões relativas a 
seu estado é exigir que se renuncie a uma situação que tem ne-
cessidade da ilusáo. Portanto, a crítica da religião, em seu ger-
me, é a crítica do vale de lágrimas, cuja auréola é a religião". 
Falar de auréola é reconhecer que a religião é fonte de luz e de 
transcendência, mas que levaria o ser humano a orientar-se 
por uma outra estrela e não por ele mesmo: "A religião, con-
clui Marx, não é mais do que o sol ilusório que se move em 
torno do ser humano, enquanto ele não se move em torno de 
si mesmo". É a nova esperança do marxismo. Mas é preciso 
levantar aqui uma pequena questão: como pode o ser huma-
no mover-se em torno de si mesmo? Além do contrassenso 
que isso implica, pode-se ainda perguntar se o ser humano 
não tem necessidade de um sol acima dele ou de uma estrela 
para orientar-se. Em todo caso, Marx compreendeu que essa 
era a mais alta função da religião. 
Feuerbach, Marx e Nietzsche, sem esquecer Freud e sua 
denúncia da religião como forma de neurose coletiva, são os 
grandes mestres da suspeita, cujo impacto sobre a filosofia da 
religião continua colossal. O motivo deles é duplo: a) a críti-
ca da religião como forma de alienação é antes de tudo con-
duzida em nome de um ideal de autonomia proveniente do 
Iluminismo e de Kant (mas note-se a ironia: enquanto essa 
autonomia ainda nos aparentava, para Kant, ao criador divi-
no, ela será para seus herdeiros o que nos incitará a prescindir 
dele); b) ela também é fortemente inspirada no positivismo 
ambiente, conceituado por Comte com sua distinção dos es-
tados religiosos, metafísico e positivo da humanidade: para 
ele só a ciência pode pronunciar-se de maneira autorizada 
1 
( 
112 Que saber sobre Filosofia da Religião 
sobre o real, mas também sobre a própria religião que pode 
ser tratada como uma forma de patologia. Por conseguinte, 
a morte próxima da religião pode ser proclamada como uma 
certeza filosófica. Sua sobrevivência só pode ser explicada de 
maneira sociológica ou psicológica. Mais recentemente, es-
pecialistas das ciências cognitivas quiseram até ver no sen-
timento religioso o efeito de um gene particular ou de uma 
ilusão produzida quimicamente por nosso cérebro.3 
Essa constelação filosófica inspirada no ideal da autono-
mia e da ciência moderna contribuiu, por um tempo, para 
certo eclipse da religião como rema central da filosofia. Após 
as desconstruções da religião de Feuerbach, Marx, Nietzsche 
e Freud, a filosofia cessou um pouco de preocupar-se muito, 
ou de maneira constitutiva, com a religião, que se tornou 
infrequentável: o positivismo levou ao monopólio da epis-
temologia ou da teoria das ciências (em que a religião não 
pode aparecer, a não ser como um exemplo negativo de não 
ciência ou de superstição); no mesmo espírito, a filosofia ana-
lítica, dominante no mundo anglo-saxão, preocupa-se com a 
verificabilidade dos enunciados e tem pouca paciência para 
os enunciados religiosos ou para o próprio tema da religião; a 
ética (individual, social e política) desenvolveu-se na maioria 
das vezes segundo o leitmotiv kantiano da autonomia, em 
que a religião estava ausente ou era um simples apêndice; 
a fenomenologia (Husserl, Heidegger) se recomenda como 
um retorno aos fenômenos tais como eles se dão, e se a reli-
gião pode ser considerada como um fenômeno, seus objetos 
e suas expressões são suspeitos e relativamente pouco trata-
' D. HAMER, The God Gene. How Faith is Hardwired lnto Our Genes (Doubleday, 
2004 ). Para explicações naturalistas, ver também os best-sellers de D. DENNETT, 
Breaking lhe Spell. Re/igion as a Natural Phenomenon (Penguín, 2006), e R. 
DAWKINS, The God Oelusion (Bantam, 2006). 
7
•
9 1DUndo ...... 1 113 
dos pelos grandes fenomenólogos da pri . 
- . me1ra geração (com 
exceçao, talvez, de Heidegger, mas que - c_1 d 
. nao raiou ela a não 
ser em seus cursos de JUVentude); o existen ·ai· c1 ismo, embora 
lançado por um pensador religioso como Kierk d e al' 
_ egaar , roe t-
za a atençao no abandono do indivíduo e sua per · , 
. . ' specuva e a 
mais ~v1de~te. do te~po a~religioso ou ateu (Sartre, Camus). 
O ex1ste~c1ahsmo duo cnstão (Marcel) continua marginal, 
como o sao as filosofias da religião mais confessionais, muitas 
vezes admiráveis, mas cuja repercussão foi limitada. A herme-
nêutica, ainda que alimentada por uma abundante tradição 
teológica (Schleiermacher é um de seus mestres), traz mais 
reflexão sobre a experiência de verdade da arte e das ciências 
humanas (Gadamer) e situa, no melhor dos casos, a religião 
"na fronteira da filosofia" (Ricoeur). A desconstrução no sen-
tido amplo (Derrida, Foucault, Deleuze), que também se 
inscreve na linhagem suspeita de Marx e Freud, apresenta-se 
antes de tudo como uma destruição da metafísica e mostrou-
-se bastante alérgica a toda forma de religiosidade, pelo me-
nos até os últimos trabalhos de Derrida. Estes foram influen-
ciados por Levinas, quese vale da religião judaica, mas o faz 
para criticar a tradição filosófica ocidental e o primado que 
ela teria reconhecido aos temas do conhecimento e do ser. 
Levinas lhe opõe o primado da ética e da interpelação que 
brota do rosto do outro. Portanto, é menos a religião do que 
a ética que se encontra aqui reabilitada, mas a evidenciação 
das raízes religiosas da ética, esquecidas desde Kant e Hegel, 
contribuiu para criar um clima mais receptivo à temática do 
religioso. A partir de então, a religião cessou de ser um tema 
absolutamente tabu em filosofia (Girard, Marion, Brague, 
1àylor, Vattimo, Habermas). Aqui, o impacto mais impor-
tante veio sem dúvida de M. Heidegger (1889-1976). 
1 
114 Que saber sobre Filosofia da Religião 
&. Heidegger e a possibilidade do sagrado 
1 • • •• :r1;;;'{·;::·y;;L 
11 /,fr 
À primeira vista, a questão da religião parece bem dis-
creta na obra de Heidegger. Se ele recebeu uma formação 
católica estrita, que o levou primeiro para a teologia e o pen-
samento tomistas, Heidegger distanciou-se bem cedo do 
"sistema do catolicismo", julgando que seu Deus era apenas 
um príncipe metafísico que servia de segurança e de apoio 
inabalável (o que ele achava blasfematório em seus primei-
ros cursos sobre Agostinho). Com Pascal, Heidegger sem-
pre denunciará um deus dos filósofos, diante do qual não se 
pode ajoelhar nem rezar. Aqui, Heidegger é influenciado por 
pensadores iconoclastas como Lutero e Kierkegaard, que co-
locam em questão essas construções filosóficas em nome da 
inquietação radical do coração humano (do qual Agostinho 
já havia falado muito, mas que ele teria encoberto, segun-
do Heidegger, sujeitando-o a uma ordem metafísica). Mas 
Heidegger também leu Rudolf Otto, que havia falado sun-
tuosamente do caráter imprevisível e fulgurante do "sagrado" 
ou do "numinoso" (entendido como experiência irracional 
do "totalmente outro" que nos transtorna, que nos derruba) 
em sua célebre obra de 1917, O sagrado. Mas, pergunta-se 
fundamentalmente Heidegger, será que essa experiência do 
sagrado ainda é possível? 
Heidegger viu claramente que essa pergunta não podia ser 
feita, a não ser retornando à sua raiz, a "questão do ser". Se essa 
questão é tão crucial é porque vivemos em uma época e uma 
tradição dominadas por uma compreensão do ser que torna 
impensável ou improvável toda manifestação do sagrado. Essa 
tradição é a que Heidegger resume, sumariamente, sob o ter-
mo "metafísicà'. Sabemos que a metafísica, desde Platão, tenta 
r 7. O mundo moderno 115 
explica~ o ser a partir de seus primeiros princípios. Ora, Hei-
degger julga que essa metafísica é animada por uma vontade 
de domínio, porque ela estaria baseada em uma concepção do 
ser que o reduz ao que pode ser captado por um olhar: o ser se 
define então por sua visibilidade portanto em · ' · 
_ _ , , pnncipio, em 
fun?a~ do olhar humano. O que Heidegger torna perceptível 
aqui e a ~oncepção nominalista do ser, da qual nós partimos, 
que faz sistema com a prioridade que a ciência reconhece ao 
que é diretamente observável. Se esse nominalismo tornou 
possível o progresso, absolutamente importante, da ciência 
moderna, Heidegger não ignora que ele deixa em aberto toda 
a questão do sentido: qual é o sentido de nossa existência e do 
cosmos, se o mundo se resume em um conjunto de massas 
em movimento regidas exclusivamente pelas leis da mecânica? 
Em ~ma construção como essa, é evidente que a religião como 
tal nao passa ~e uma construção segunda do espírito que não 
p~de ser co~siderada senão como a ficção à qual alguns indi-
v1d~os_ contmuam presos em razão de suas origens ou de suas 
angustias. Aqui a fé não é mais do que uma atitude subjetiva, 
portanto problemática. Mas isso também é verdade de todas 
as con~icções fundamentais de que se fala, há pouco tempo, 
apropnando-se de um vocábulo da economia do século XIX 
em termos de "valores". Entenda-se: elas valem, isto é, são ren~ 
táveis, para este ou aquele sujeito. Mas esse valor não remete 
mais a nada de substancial ou de superior. É uma das conse-
quências do império do nominalismo. 
... Heidegger tem razão quando pensa que a questão do 
nulismo encontra aqui sua origem: se todos os valores só de-
pen~em do sujeito que determina o que é, que estrela ou que 
medida, pode ainda orientá-lo? Parece que essa medida só 
depende do bom valor do sujeito que confirma desse modo 
sua onipotência, mas ao mesmo tempo sua impotência in-
1 
( 
116 Que saber sobre Filosofia da Religião 
trínseca: quem é ele então para determinar o que deve dar 
um sentido último a sua vida? A grandeza de Heidegger está 
em ter reconhecido essa aporia do niilismo, originário do no-
minalismo. A seus olhos, a salvação só pode então provir de 
uma nova compreensão do ser. 
Por isso ele afirma, em sua Carta sobre o humanismo, que 
a questão do ser é prévia à questão do sagrado e do divino.4 
Trata-se, para ele, não tanto de impor condições, "idólatras", 
ao aparecimento do divino, como pensou J.-L. Marion em 
seu formidável debate com Heidegger,5 mas de reconhecer 
que a questão do divino está "fora do lugar" na perspectiva 
do nominalismo. Para Heidegger, este nominalismo equivale 
a um esquecimento do ser, porque é esquecido que sua con-
cepção fisicalista do real não é nada mais do que uma das ma-
nifestações do ser, a que adquiriu um monopólio em nossa 
tradição. Somente uma outra compreensão do ser pode ainda 
nos salvar, e é dela que dependeria a questão do sagrado, do 
sentido ou do divino. Mas essa concepção, Heidegger não 
pretende elaborá-la pessoalmente. Adventista a sua maneira, 
ele espera apenas dispor o pensamento para seu possível ad-
vir. É assim que sua última filosofia se dedica à preparação de 
um pensamento enfim livre de seus trilhos nominalistas. Seu 
pensamento do ser como evento (Ereígnis), ou como um jor-
rar, "sem razão", como sua escuta de Hõlderlin, que colocou 
em poema a ausência dos deuses, não tem outra preocupação 
senão explorar esse lugar inverossímil, mas tanto mais neces-
sário, de um novo advir do ser e, portanto, do divino. 
O limite da análise de Heidegger, cujo diagnóstico é 
perspicaz, é que ele nem sempre espera mais do que uma 
manifestação vertical do sagrado, desconsiderando pelo 
'M. Heidegger, Lettre sur /'humanísme, Aubier, 1983, 134s. 
5 J.-L Maríon. Díeu sans l'êlre, Fayard. 1982, 62. 
r ---.............. ! ....... ~~~~ ·~••rnn a 7.o ............ , 117 
próprio fato toda capacidade d _ 
o divino, capacidade q ª razao humana de pensar 
ue, no entanto fi . b. d d 
a filosofia da religião (e H . ' 01 o Jeto e to a 
que e1degger p - le 
volens quando criti ressupoe, no ns 
' ca uma concep - 1 
Priada do divino) H ·d çao q~e e e julga inapro-
. e1 egger tamb ' 
- , em· resta muito pouca 
atençao a compreensão do ser qu J. A • 
. 1. e preceueu a emergenc1a do nomma ismo, a do platonismo y· t ·. PI -d · is 0 que atao compre-
en e o ser a partir da constância da id . H 'd h l eia, e1 egger ac a 
que e e o apreendeu exclusivamente na perspectiva do olhar 
hur_nano e que ele deve ser assimilado ao nominalismo. Mas 
Heidegger não chegou a ver bem que a concepção platôni-
ca do ser, como manifestação da essência, representava um 
f~rte contrapeso à concepção nominalista do ser que iria 
rnu~far ~ou~o ~epois. Porque o que existe primeiro, para 
Platao, nao e o isto diante de mim, o objeto quadrado que 
minha inteligência pode captar. Platão sempre vê aí uma 
realidade segunda em relação à evidência primeira da ideia. 
Sem dúvida, a ideia parece compreendida como alguma 
coisa que se deixa "ver" (o eidos estando solidamente fixo a 
um eidenai que quer dizer ver e saber, como seu equivalente 
latino species remete a spectare). Mas se o eidos se dá a ver, 
ele jamais se mostra a si mesmo, jamais é dado como tal em 
carne e osso. O eidos nem sempre pode serreconhecido, a 
não ser a partir de suas aparições sensíveis. Ele é evidente 
(e-videre) à flor do sensível, onde não se pode senão entre-
vê-lo. 
A essência, ou o eidos, também não é o pensamento que 
nos vem ao espírito quando nos surpreendemos no mundo 
das instâncias de beleza, de bondade, de harmonia e de re-
gularidade. Ela nos ensina que o ser não se reduz ao choque 
das moléculas estudadas pela física moderna, mesmo que ela 
o faça às vezes com um sentimento religioso cósmico que não 
( 
118 Que saber sobre Filosofia da Religião 
a desonra: é que esses seres são manifestamente regidos por 
constantes e continuidades de uma sutilidade infinita. Por 
esse lado, o mundo, e o próprio nominalismo, deixa-se luzir 
e entrever um outro nível de ser que se pode qualificar de su-
perior, tanto ele se distingue nitidamente do mundo imedia-
to que fascina primeiro nossos sentidos. No contexto de um 
tal pensamento da essência, a manifestação do divino torna-
-se de novo pensável. Heidegger insistiu muito pouco nisso, 
mas a própria religião brotou de uma experiência do ser que 
reconhece no mundo da vida manifestações da essência divi-
na. Sua experiência fundamental é a de um mundo que é de 
imediato razoável, sensato. Para nosso tempo, talvez seja essa 
a maior filosofia da religião, sua mais valiosa sabedoria. 
Conclusão 
primeiro momento constitutivo de uma filosofia 
da religião, pelo menos daquela que foi aqui es-
boçada, depende do reconhecimento de uma des-
cendência ou de uma dívida, mais ou menos confessada, da 
filosofia em relação à religião. É que a religião existiu bem 
antes da filosofia e prefigurou quase todos os seus temas e o 
sentido de sua busca de sabedoria. Pode-se pensar primeiro 
na separação entre os divinos e os mortais (que alguns filóso-
fos tentarão reabsorver falando de uma "imitação do divino", 
Teeteto, 176 a), que prefigura a distinção metafísica dos dois 
mundos, divino e mortal, racional e sensível. 
Mais profundamente ainda, o "divino", sentido como po-
der superior, é pensado como responsável pela ordem do mundo 
e da virtude. Toda bondade e toda ordem encontram, portan-
to, sua fonte nele, dirá Platão. Suas ideias virão assim substituir 
os deuses da mitologia como grandes princípios da ordem do 
mundo, embora Platão continue a inspirar-se nessa herança, 
nem sempre distinguindo a busca racional da sabedoria míti-
ca, sendo esta espontaneamente mobilizada para apoiar aquela. 
Ora, essa dívida, essa descendência em relação à herança mítica, 
não exclui a crítica dessa herança, muito ao contrário. 
Por isso, o segundo momento determinante na relação 
da filosofia com a religião se exprime por uma crítica da tra-
1 
( 
120 Que saber sobre Filosofia da Religião 
dição mítica, fundada em Platão sobre uma "agatonização" 
do divino. Essa é uma atitude bem constante da filosofia em 
relação à religião. Embora nem sempre conteste sua descen-
dência, a filosofia se recomenda então como um saber racio-
nal e argumentativo que a obriga a fazer severas críticas à tra-
dição mítica, mas, importa sabê-lo, servindo-se de critérios 
fornecidos por essa mesma tradição. Porque é a religião que 
nos ensina que os deuses são superiores, bons, transcendentes e 
que não se pode, portanto, atribuir-lhes insuficiências dema-
siadamente humanas, como se arriscam a fazê-lo os poetas. 
Se a filosofia da religião apresenta uma crítica do mito, ela 
propõe ao mesmo tempo uma versão purificada dele. Cícero 
se inscreve nessa tradição dizendo que a religião procede de 
uma leitura atenta, portanto filosófica, das questões que estão 
ligadas ao culto dos deuses. Por conseguinte, não há religião, 
rigorosamente compreendida, sem filosofia. 
Essa crítica filosófica da tradi~ão mítica pode ser parcial 
ou total: ela pode ser feita em nome de uma concepção mais 
racional do divino, mas também pode levar a uma desconsi-
deração total do religioso. Essa crítica total será o apanágio 
da modernidade tardia, porque eh se encontra muito pouco 
na Antiguidade e permanece, com certeza, totalmente au-
sente na Idade Média. Não continua apenas uma crítica diri-
mente da religião (Nietzsche, Freud, Dawkins), continua uma 
filosofia da religião que decorre dessa tradição da crítica do 
mito. Ora, se ela critica as religiões, é porque pretende ter uma 
ideia melhor da salvação do ser humano. Essa salvação parece 
então consistir em uma libertação em relação a qualquer tipo de 
religião. Contudo, essa crítica não poderia esquecer que a pró-
pria ideia de libertação e de salvação também vem da religião. 
Essa atitude crítica face à tradição mítica se faz por meio 
de uma operação filosófica corrente a respeito da religião, a 
da desrnitofogização. É aquela que Aristóteles exp · 
M ,.p . d - nme em sua 
· etaJwca, quan o se refere a sua explicação raci· ai d ~ . M U~ 
eras celestes dizendo que ela retém o núcleo cred' l d 
. ive o en-
srnamento mítico sobre os deuses. O termo desmit l · -
, , o og1zaçao 
so aparecera com Bultmann, no século XX Mas Ar" ' l 
. , . · isrore es 
Ja a pranca quando ele afirma que há na tradiça-0 r l" · 
" e~~ 
e_lementos para o povo, n;as que é à filosofia que cabe des-
r1:a~-lhes a r~c~onalidade. E ela que Marx prolonga, quando 
dtstmgue o opio para o povo do potencial revolucionário da 
religião, mas Cícero, Averróis, Maimônides, Spinoza e Kant 
já a praticam quando extraem da religião uma sabedoria mais 
racional e por conseguinte mais universal. 
Esse projeto de desmitologização, que, como vimos, 
já fazia parte da religião, na medida em que ela encerra 
uma crítica das concepções inadequadas do religioso, leva 
a uma concepção depurada do divino. Como devemos 
conceber os deuses? Será que eles se ocupam conosco? Eis 
a importante questão no centro do debate sobre a nature-
za dos deuses que coloca em confronto epicureus e estoi-
cos. Mas esse debate é empreendido cada vez em nome de 
urna concepção do divino que pretende ser mais racional 
e mais coerente: os epicureus se apoiam na transcendência 
radical do divino para afirmar que os deuses se ocupam 
conosco, enquanto os estoicos se apoiam em sua bondade 
para chegar à conclusão de sua providência. Para o bem do 
culto público, portanto, por razões que podemos dizer po-
líticas, Cícero acha que é mais sábio pensar que os deuses 
se ocupam conosco. 
Essa ideia de desmitologização pensada até as últimas 
consequências pode também culminar, em sua versão mais 
triste, no ateísmo: porque é valendo-se dela que se pode jul-
gar insustentável a ideia de seres mais ou menos invisíveis 
{ 
122 Que saber sobre Filosofia da Religião 
.~---r 
que seriam responsáveis pela ordem do mundo. Desse modo 
o ateísmo é uma desmitologização radical e, a este título, 
uma filosofia da religião. 
A própria filosofia, nascida de um esforço de desmito-
logização, pode às vezes tomar o lugar da religião. Esse rigor 
pode desembocar em uma fusão da religião e da filosofia. Essa 
atitude emerge na Antiguidade tardia, na esteira das escolas 
do helenismo, dedicadas à busca da felicidade ou do bem-es-
tar individual. A filosofia e a religião se compreendem então 
como outras tantas vias que conduzem à felicidade da alma. 
É assim que, para Agostinho, o cristianismo nada mais é do 
que a verdadeira filosofia. Esse modelo fusionista exercerá 
certa atração sobre a Idade Média (e continua operante ain-
da hoje, quando esperamos da filosofia lições de vida), mas 
a redescoberta dos autores antigos no curso desse período 
obriga os pensadores a dissociar duas ordens de saber: uma 
sabedoria religiosa revelada em um texto sagrado, no qual se 
deve distinguir a sabedoria profana, fundada na razão huma-
na, mas cujo alcance é universal. Passa-se assim de uma fusão 
da filosofia e da religião a uma forma de coabitação das duas, 
que poderá tomar a forma de uma subordinação(da razão à 
revelação ou desta àquela) e mesmo de uma oposição, quando 
o prestígio de uma leva à desconsideração da outra. 
O mérito dos melhores pensadores muçulmanos e de 
seus herdeiros é ter insistido na autonomia dos dois tipos 
de saber. Mas pelo próprio fato a revelação aparece cada vez 
mais como uma sabedoria particular e historicamente datada, 
enquanto a universalidade, certamente pensada pelas grandes 
religiões, tornar-se-á o apanágio da filosofia. Portanto, o sa-
ber racional e científico se imporá como o único. Com a 
modernidade avançada, esse monopólio levará a uma crítica 
radical da religião (logo depois seguida, com todo rigor, de 
1 
1 
-
____ I 
uma crítica da própria razão). Chegamos assim, se quiser-
mos, a uma filosofia sem religião, a qual continua sendo, quer 
reconheça ou não, uma filosofia da religião. 
Para toda a tradição, tanto da filosofia como da própria 
religião, o que nos aproximava do divino era a razão. Ora, 
hoje ela serve muitas vezes para contestar sua realidade. A 
questão que aqui se pode colocar é a de saber se essa razão 
pode então explicar a si mesma e a ordem do mundo que ela 
procura compreender, que ela deve necessariamente pressu-
por e na qual ela mesma se insere. 
A constelação que leva a uma crítica filosófica radical da 
religião não é estranha à compreensão nominalista do ser que 
o reduz a sua aparição física, espacial e mensurável. Isto é, um 
mundo sem deuses, cuja única consolação é ser científico. 
A religião pode lembrar à filosofia que esse mundo não é o 
único, nem talvez o primordial. Para ela, a evidência primária 
é antes a de um mundo cheio de sentido. Não devemos pre-
cipitar-nos para falar aqui, segundo uma caricatura rebatida, 
de um mundo encantado que se poderia opor a um mundo 
que seria desencantado. Porque é um projeto do saber hu-
mano que decreta que o mundo, tal como ele se apresenta, 
é desprovido de sentido. O mínimo que se pode dizer é que 
isso não é a priorí evidente. É que o mundo que nos cerca, 
o mundo do espírito, da natureza e até mesmo o da física, é 
um mundo à primeira vista sensato e cujas razões podemos 
compreender. Esse sentido, e na medida em que ele é res-
sentido como tal, pode suscitar admiração. Esta veneração 
encontrou sua expressão multiforme nas religiões. Elas vêm 
assim fazer a filosofia voltar a sua própria pressuposição, a 
do sentido do mundo. Se a religião pode despertar-nos para 
esse sentido, ela respeita ao mesmo tempo tudo o que há de 
incompreensível. 
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