Procurando uma aspirina no fundo do armário do banheiro, me deparei com uma menina loirinha, numa caixa de papelão: "Máscara tripla Kids, tamanho único, 3 a 12 anos". Senti um frio na barriga. Era a Tropa de Choque dos meus neurônios tratando de lançar granadas de adrenalina e cortisol na minha corrente sanguínea, me deixando naquele estado que os americanos chamam de "fight ou flight", lutar ou fugir. "Caramba", lembrei, com as mãos suadas, "não é que teve aquilo?".
Lembro, nos primeiros meses da quarentena, das muitas especulações sobre o que seria o mundo depois. Se em agosto de 2020 abraço fosse uma commodity, seu preço no mercado de futuros iria pro céu. Diziam que a gente ia sair do isolamento abraçando o porteiro, o motorista do Uber, a caixa do Mambo. Amigos andariam de mãos dadas, como na Grécia. Haveria uma segunda revolução sexual, com surubas homéricas – embora eu não me lembre de nenhuma suruba na Ilíada ou na Odisseia – toda segunda, quarta e sexta.
Lembro também de uma entrevista com o Aílton Krenak, em que lhe perguntaram que lições tiraríamos daquela experiência. Ele disse que nós, caras-pálidas, tínhamos uma mania engraçada de achar que as tragédias sempre traziam consigo um aprendizado. Disse que a pandemia era um evento terrível, que morreriam milhões e ponto. Só em Hollywood (isso digo eu) é que no terceiro ato, depois do clímax, o protagonista sai mudado para melhor.
Manuseando a caixinha de máscaras, percebi que não só não aprendemos lhufas com a Covid, como tratamos de esquecer tudinho. É impressionante como são poucas as obras a respeito. Onde estão as Guernicas, os Matadouros #5, as Rosas de Hiroshima da SARS-CoV-02? (Lembrei agora de SARS-CoV-02. Nem sabia o que era. Dei um Google. Era o nome e o sobrenome da porcaria do vírus. Li diariamente essas letras por dois anos, depois as escondi atrás das fitas VHS, das fitas K-7, dos tênis Montreal do Sílvio Santos, no último socavão da memória).
Ouvi outro dia um podcast do New York Times. Dizia que estamos, hoje, mais despreparados para uma nova pandemia do que estávamos em 2020. Trump avacalhou com boa parte das organizações multinacionais. O discurso antivacina ficou mais forte. (Taí um assunto que quebrou, no mau sentido, as bolhas de esquerda e direita. Essa ideia estúpida de que vacina faz mal surgiu nas franjas da esquerda, nas escolas Waldorf, daí migrou pros mullets da extrema direita. Vai entender?).
Parece uma praga divina. Ou satânica. "Vos, humanos, tereis consciência, estudareis sobre o passado, refletireis sobre o futuro, mas não aprendereis necas de pitibiriba". A mesma galera da Primeira Guerra Mundial fez a Segunda. Os sobreviventes da ditadura votaram num candidato a ditador.
Pior. Cada geração nasce zerada e incorre nos mesmos erros das anteriores. Todo bebê, seja ele filho de um engenheiro elétrico ou do Nobel da física, vai meter os dedos na tomada. Filhos de biólogos vão agarrar taturanas. Ao longo da vida, tampouco aprendemos muito. O menino que bebeu até vomitar no bar mitzvah do, sei lá, Abraão, vai vomitar de novo na festa de 15 anos da, sei lá, Patrícia.
A gente cria um modus operandi na infância e segue errando ao longo da vida. Podemos chamar de neurose, de praga, de karma, sei lá. Temos aí pra mais de dez mil anos de aprendizagem. Belas obras. Sófocles, Ésquilo, Aristófanes. Shakespeare, Cervantes, Beethoven, Machado de Assis, Beatles e Zeca Pagodinho. A gente não aprende. Só piora. Bicho burro.
Com toda crítica do mundo tá? A solidariedade veio da mídia por rádio parecia cenário de guerra. A gente agradece a NSC toda equipe daqui perto de nós que fez um trabalho incrível de apoio, saúde mental e vocês aí, e o que a gente aprendeu com a solidariedade? Nada! Trezentas mil crianças em desnutrição profunda em Gaza. Aminesia histórica ou memória seletiva? O cenário continua trágico e ainda chamam isso de civilização.