Desde que se estreou com o EP minor, em 2020, a cantora de 25 anos teve uma explosão fulgurante de popularidade, patente na forma como já encabeçou duas digressões mundiais — com os bilhetes para a data portuguesa, por exemplo, a esgotarem num ápice —, como foi nomeada para o Grammy de Artista Revelação e como é descrita como figura de destaque na atual vaga de cantautoras que misturam um estilo confessional e esparso com tendências pop.
Abrams teve, contudo, algures neste percurso, uma experiência que a própria descreveria em várias entrevistas como altamente transformadora: ser uma das artistas responsáveis pelos espetáculos de abertura da Eras Tour de Taylor Swift entre 2023 e 2024. “Senti que estava a aprender a cada segundo que estava no palco, fora do palco, nos bastidores, tudo, a ver cada um dos espectáculos para os quais abri”, afirmaria. Para o melhor e para o pior, notou-se esta noite.
Sendo uma mulher artista em 2025, muitas das críticas dirigidas a Gracie Abrams são injustas — inclusive acusações de nepotismo, já que o seu pai é o realizador e argumentista J. J. Abrams —, mas a forma como foi beber inspiração à maior figura pop do mundo não é uma delas. Quer tenha sido um ato consciente ou não, entre o primeiro álbum — Good Riddance — e o segundo — The Secret of Us — há uma colagem cada vez mais evidente, particularmente aos projetos de índole indie-folk que Swift lançou durante a pandemia, Folklore e Evermore. O facto de, depois dos EPs, ter passado a trabalhar intimamente com Aaron Dessner — produtor, membro dos The National e colaborador frequente da artista—, a quem chamaria “mentor”, apenas reforça a suspeita, tal como literalmente ter composto um dueto, Us, com a cantora, que é particularmente seletiva a quem concede essa honra.
Nada disto, contudo, implica que a música de Gracie Abrams seja insuficiente ou incapaz; pelo contrário, a artista mostra-se uma estudiosa do género — Lorde e Phoebe Bridgers são outras influências aparentes — e das fórmulas de composição, sabe escrever um refrão orelhudo e uma bridge empolgante. O problema é que, não obstante toda a competência, o resultado final é um bolo musical sem rasgo, um sucedâneo de ideias melhor exploradas por outros artistas. Continuando a metáfora gastronómica, é como ter acesso aos melhores ingredientes do mundo e saber aplicar a receita à risca, mas sem pôr sal.
Ora, transpondo esta problemática para um espetáculo ao vivo, quer isto dizer que, por melhores que sejam as performances de Abrams e da banda a acompanhá-la em digressão, não há muito mais que possam fazer se a matéria-prima não está lá. Sem ter uma voz absolutamente extraordinária, a cantora sabe usá-la e foi irrepreensível nesse aspeto, tal como na forma como se foi desdobrando entre guitarras e teclados. Mas, ao longo de duas horas, as músicas foram-se dividindo entre os singles que geram entusiasmo imediato e sequências de canções a dada altura indistinguíveis umas das outras.
Por exemplo, se a combinação inicial de Felt Good About You — com Abrams semi-obscurecida, atrás de um ecrã de LEDs que ocupava toda a largura do palco, a cantar numa repetição quase marcial — e Risk (uma das tais com um refrão orelhudo) criou energia, Blowing Smoke tratou logo de refreá-la. Foi nesta dinâmica que o concerto se pautou — por cada momento mais memorável de Tough Love ou I Love You, I’m Sorry, seguiram-se xaropadas como I Told You Things ou Gave You I Gave You I.
O aspeto mais trágico a ficar particularmente visível, no entanto, foi o facto de algumas das canções mais fortes da noite serem das mais precoces da sua curta carreira, com a inexperiência desse período a ter a vantagem de ser impermeável ao conformismo que lhe seguiria. 21 foi um dos destaques da primeira parte do concerto, tal como Friends, ambas de roupagem mais eletrónica, bons exercícios da tradição da bedroom pop. Ou Rockland, assente num dedilhado e percussão esparsa, folk dos tempos em que, como lembrou no palco, escrevia canções sozinha no quarto em tons sussurrados.
Todas estas considerações, note-se, terão sido certamente minoritárias na Meo Arena, onde uma multidão de indefectíveis cantou todas as músicas com o zelo habitual das fandoms da pop: entre gritos. Aliás, a cumplicidade entre a cantora e a audiência não só ficou de imediato aparente quando esta se dirigiu pela primeira vez à plateia, como foi um dos aspetos mais positivos de toda a noite. Numa época onde é cada vez mais difícil despir o cinismo e conseguir distinguir entre a convicção e a estratégia de marketing dissimulada, os sorrisos, os engasganços e as interações de Abrams parecem ações genuínas — quando diz “Lisboa, vocês são um sonho”, nós acreditamos.
Nesse aspeto, o momento a puxar por esse intimismo deu-se quando veio a ocupar um diminuto palco no centro da Meo Arena, decorado como um quarto, com uma cama onde se sentou a tocar Amelie. Recordando que os primeiros concertos que deu na vida foram através de plataformas como o Zoom, já que decorreram na pandemia, Abrams deslocou-se depois para o teclado onde tocou Cool e I Miss You, I’m Sorry em frente a uma câmara a recordar esses tempos de mediação digital.
De volta ao palco, e com o público em ponto de rebuçado, Us reforçou a tese que o diagrama de Venn entre fãs de Gracie Abrams e Taylor Swift são dois círculos sobrepostos e Free Now, apesar do raro vislumbre de uma guitarra elétrica nas mãos da cantora, não trouxe o aporte de energia que esse instrumento musical costuma significar. Isso ficaria reservado para o encore, indubitavelmente o momento alto do concerto, com That’s So True e Close to You. A primeira, apesar ser derivativa que dói, tem um nervo que falta a grande parte das músicas de Abrams e triunfa sob esse princípio; a segunda, com a batida dos anos 80 no refrão, é um poço de euforia que faz esquecer que já ouvimos isto tantas outras vezes.
Tudo isto para dizer que, apesar do talento, falta audácia a Gracie Abrams, algo que Dora Jar pareceu ter em sobra para ceder à sua congénere que a convidou para a primeira parte destes concertos. Recordando ter sido alvo de uma petição para ser substituída na digressão — com o inacreditável pretexto de ser pouco conhecida e das suas canções serem “lentas” — a artista nova-iorquina respondeu com um alinhamento inteiramente acústico, qual chapada de luva branca, acompanhada apenas de acordeão, baixo e guitarra. Saúde-se a iniciativa, mas também a postura de Abrams, que defendeu publicamente a sua convidada.
Claro está que tudo isto poderia não passar de sinalizações de virtude caso Dora Jar não tivesse as canções a nivelar com o descaramento com que as apresentou. Felizmente, não foi esse o caso. Apesar de ser de uma cepa semelhante à de Abrams, a autora de No Way to Relax When You Are on Fire é devedora de uma escola mais ligada à art pop, mais teatral e burilada. Ainda que tenha uma voz que, a espaços, recorda a de Phoebe Bridgers, a sua música é mais lúdica e a sua energia menos soturna, mais expansiva. A bons momentos como as harmonizações de She Loves Me ou da escalada quase Violent Femmes de Multiply, ainda teve a generosidade de tocar uma versão de Champagne Supernova, dos Oasis — não fosse alguém queixar-se que não tocou nada conhecido.