Defender abertamente a decisão de não se tornar pai ou mãe será processado na Rússia. A Duma, a câmara baixa do Parlamento do país, está preparando um projeto de lei com multas de até € 50 mil (cerca de R$ 303 mil) para quem apoiar a "recusa em ter filhos". A medida afeta todas as áreas da vida, desde conversas casuais até a criação de filmes e livros — e é uma séria ameaça ao movimento feminista russo.
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A perseguição ao que o Kremlin chama de "movimento childfree" ou simplesmente "movimento sem filhos" acarretará multas de até 400 mil rublos para pessoas físicas (cerca de R$ 23 mil), 800 mil rublos para funcionários públicos (R$ 46 mil) e até cinco milhões de rublos (R$ 291 mil) para empresas ou outras entidades legais. Além disso, os estrangeiros seriam deportados.
Há milhares de motivos pelos quais uma mulher ou um homem podem decidir não ter filhos, mas o Gabinete de ministros solicitou ao Parlamento que a lei contemple apenas três exceções: motivos religiosos, motivos médicos ou em caso de estupro. Ele também aponta para um movimento supostamente maciço e organizado na internet, e os jornais russos citam a existência de algumas comunidades no VKontakte, o Facebook russo, que têm apenas 5 mil assinantes.
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"Começamos a considerar um projeto de lei que proibirá a propaganda da recusa consciente a ter filhos", anunciou o presidente da Duma, Vyacheslav Volodin, por meio de seu canal no Telegram. "As publicações e redes sociais muitas vezes desrespeitam a maternidade e a paternidade, atacam mulheres grávidas e crianças, bem como membros de famílias numerosas", acrescentou o político, um firme defensor da guerra da Ucrânia, que deixou dezenas de milhares de lares russos sem pais e filhos.
— Tudo o que interfere no aumento da taxa de natalidade deve desaparecer de nossas vidas — disse o porta-voz do presidente russo, Dmitry Peskov, que, no entanto, não prevê a participação de Moscou nas negociações de paz promovidas pela Ucrânia. — Para nós, não há alternativa aos nossos objetivos. Assim que eles forem alcançados, de uma forma ou de outra, a operação militar especial será encerrada.
O presidente Vladimir Putin declarou, no início de setembro, que seu governo deve criar as condições necessárias "para que volte a ser moda, como costumava ser, ter muitos filhos — sete ou dez pessoas em uma família".
Apesar de Putin estar a ponto de completar um quarto de século no poder, a Rússia, com uma população de 146 milhões de habitantes, está em declínio demográfico desde o século XX, agravado ainda mais pela guerra, por uma pirâmide geracional invertida e por políticas internas.
No ano passado, 1,3 milhão de pessoas morreram e 1,26 milhão de crianças nasceram, o número mais baixo desde o colapso da União Soviética, com exceção de 1999, devido à fatídica crise do rublo. Além disso, o endurecimento das políticas contra estrangeiros provocaram a fuga em massa: o número de imigrantes registrados caiu de 8,5 milhões para 6,1 milhões no último ano.
Putin aprovou um programa de apoio à maternidade em 2007 que hoje paga 466.617 rublos para o primeiro filho (R$ 26,8 mil), mais 150 mil rublos (R$ 8.600) para o segundo. Entretanto, o projeto não aumentou o número de gestações em um país onde apenas um décimo da população recebe um salário mínimo por mês e um soldado recebe dez vezes mais por um ano na linha de frente.
Paralelamente, a Duma está analisando outro projeto de lei, apresentado no final do ano passado, para proibir o aborto em clínicas particulares. Pelo menos 11 regiões tomaram essa medida individualmente, mas o governo solicitou uma "revisão significativa" da reforma, porque acredita que ela aumentará os gastos públicos e poderá aumentar a mortalidade materna ao recorrer a operações clandestinas. Além disso, os deputados também estão discutindo a redução do limite de tempo para o aborto de 12 para nove semanas.
Guinada
O projeto de lei é mais uma reviravolta na profunda ideologização do Estado russo que vem sendo realizada pelo Kremlin sob sua suposta "defesa dos valores tradicionais". Autoridades acusam o Ocidente de estar por trás de qualquer pensamento liberal, mesmo quando se trata de direitos humanos universais, e com esse argumento reprimem qualquer dissidência interna que defenda uma outra Rússia.
— Certa vez, eu disse que deveríamos proibir por lei o movimento sem filhos porque esse é um projeto estrangeiro, é um projeto hostil — disse Valentina Matvienko, presidente do Conselho da Federação, a câmara alta, na semana passada. — Eles estão introduzindo no cérebro das mulheres, com as tecnologias mais modernas, que a maternidade deve ser renunciada.
Ninguém a favor da escolha pessoal de não ter filhos participará do debate sobre a lei. O vice-ministro da Justiça, Vsevolod Vukolov, disse em junho que o governo promoveria tais iniciativas "para proteger os valores do povo russo", enquanto o chefe do Conselho Presidencial de Direitos Humanos, Valery Fadeyev, afirmou no ano passado que "as pessoas LGBTQIAPN+, o feminismo radical, o ambientalismo radical e a ausência de filhos dominam no Ocidente".
— Aqueles que não aceitam essa ideologia são declarados inimigos da liberdade e partidários da tirania — acrescentou Fadeyev, que acusou o Ocidente de "deformar" os direitos universais "para interferir nos assuntos internos dos Estados". — Eu chamo essa ideologia de ideologia da morte, a destruição da família.
De fato, o espaço para o debate na Rússia é cada vez menor: Na terça-feira, a Duma anunciou outra reforma legal que punirá com até dois anos de prisão aqueles que insultarem pela Internet ou pela mídia "a honra ou a dignidade de um funcionário público em termos de suas qualidades pessoais ou profissionais".
É improvável que essas sejam as últimas medidas das autoridades russas obcecadas em defender os "valores tradicionais", apesar de estarem regularmente envolvidas em escândalos. Somente neste mês, dois vieram à tona: as gravações de um deputado com uma prostituta dentro da própria Duma no último fim de semana e o casamento surpresa no início de setembro entre a defensora infantil da Rússia e o proprietário do canal de televisão ultraortodoxo Tsargrad, dois defensores da tradição que tinham parceiros e famílias numerosas até poucos meses atrás.
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