A vantagem e ao mesmo tempo o desafio imenso de uma série documental sobre Jô Soares é a multidimensão do seu perfilado. Mas “Um beijo do Gordo”, lançado pelo Globoplay, consegue vencer obstáculos. A produção — com roteiro e direção de Renato Terra — vai crescendo e se afirmando ao longo dos seus quatro episódios. No fim, entrega um retrato bem completo desse gigante único e adorável.
A série mergulha num arquivo rico, com direito até a imagens preciosas de “A família Trapo”, com Jô dividindo a cena com Ronald Golias nos primórdios da televisão brasileira. Trechos de atrações como “Satiricom”, “Planeta dos homens” e “Viva o Gordo” também costuram o primeiro capítulo. Assim, o programa já chega apresentando sua pesquisa séria e com bom critério na (difícil) seleção das joias desse baú. Parte do que ia ao ar naqueles tempos envelheceu mal. Mulheres seminuas, piadas homofóbicas ou longas para os critérios de hoje são algumas das razões para isso. A produção expõe exemplos desse humor de então, evitando dissimulações e embelezamentos, e sem didatismos. Cabe ao espectador e a alguns dos entrevistados refletir sobre as mudanças de comportamento e as transformações do pacto social nas últimas décadas.
É muito bom também reencontrar personagens antológicos. Entre eles estão Sebá, o último exilado em Paris, que tinha como bordão “je vis de bec” (em francês atravessado “eu vivo de bico”); o Capitão Gay e Norminha. Vemos ainda contemporâneos de Jô na televisão, como Henriqueta Brieba, Francisco Milani, Luís Delfino e Agildo Ribeiro. E há imagens pessoais: da infância e da juventude, na Suíça onde ele estudou. Tudo isso serve a avalizar algo que todo o público já sabe: a motivação primária do humorista, desde pequeno, era fazer rir e agradar plateias.
A virada na direção do programa de entrevistas e a saída da Globo, os anos no SBT e, depois, a volta à antiga emissora estão lá. Tudo em ordem cronológica e com depoimento de Boni, com quem Jô se desentendeu e depois fez as pazes.
O teatro, a literatura e a pintura, atividades que ele exercia, assim como a música, fazem parte dos quatro capítulos. “Um beijo do Gordo” tem muito material conhecido. Isso é ótimo: o espectador deseja a conexão com a memória afetiva. Mas há também duas surpresas poderosas. A primeira é Flavia Pedras Soares, grande amor da vida de Jô. Ela comove com a profundidade de seu testemunho e a franqueza. Escapa àquilo que mais temos visto em entrevistas: o festival de elogios chapa branca. Sempre que ela entra, a série sobe alguns degraus. E a participação de Fabio Porchat, confessional e bem ilustrada com arquivo, também é forte. Essas duas presenças compensam a falta que fazem depoimentos de certos veteranos da TV (será que o Projeto Memória, da Globo, não teria esse material?). No mais, Renato Terra e equipe fizeram um excelente trabalho. E viva o Gordo.