Quem já viu o seu contrato de trabalho extinguir-se - porque chegou ao fim o prazo ou porque foi despedido - conhece certamente a declaração, que as entidades patronais exigem que o trabalhador assine, a dizer que “nada mais tem a exigir da entidade patronal", que considera estar "pago tudo quanto lhe era devido", que concorda não ter “direito a reclamar mais quaisquer valores seja a que que título for”. Este tipo de declarações, através das quais quem trabalha prescinde de créditos que lhe são devidos (de salários, férias não gozadas, subsídio de natal, horas extra trabalhadas e não pagas…), tornaram-se um padrão, assinadas aos milhares todos os anos, supostamente de livre vontade, às vezes sem plena consciência dos valores em causa. Mas elas são um absurdo legal e uma ofensa que explora a fragilidade de quem trabalha para isentar os patrões de obrigações que a lei lhes atribui. Finalmente vão acabar.
A decisão foi tomada esta semana, com a aprovação no Parlamento de uma proposta do Bloco, e tem um alcance duplamente significativo. Primeiro, pela sua importância patrimonial: se os direitos à retribuição, ao subsídio de férias, à formação, ao pagamento das horas extra são irrenunciáveis, por que haveriam de poder não ser pagos quanto o contrato chega ao fim? Em segundo lugar, impedir estas “remissões abdicativas” impostas pelos patrões é também uma questão de dignidade e de respeito por princípios elementares do direito do trabalho.
A questão é antiga. Sobre ela escreveram há décadas juristas como Jorge Leite, para quem a irrenunciabilidade destes direitos implicava a nulidade deste tipo de cláusulas ou declarações. Mais recentemente, a propósito de um acórdão sobre a Douro Azul, empresa conhecida pela prática reiterada de abusos laborais, João Leal Amado retomou o tema, alertando para o problema e apresentando com clareza o debate em curso.
Validar estas práticas empresariais, através das quais o trabalhador dá alegadamente acordo a que a empresa não lhe pague o que é devido, é uma daquelas combinações indecentes de desvalorização económica e de desvalorização pessoal de quem trabalha. Por um lado, a lei diz: o salário, as férias, o pagamento das horas extras, a compensação pelo fim do contrato etc., são normas imperativas, direitos irrenunciáveis que não estão à disposição do “acordo das partes”, ou seja, o trabalhador não pode dispensar-se de ser pago, não pode aceitar receber menos que o salário mínimo ou não gozar férias pagas, por exemplo. Mas por outro lado, tem vingado, não apenas na prática mas em inúmeras decisões judiciais, a doutrina segundo a qual, no momento em que cessa o contrato, o cumprimento desses direitos irrenunciáveis passaria a poder ser dispensado por uma mera declaração.
O argumento utilizado em favor de tais declarações lesivas de quem trabalha é que, tendo a relação laboral chegado ao fim, ou estando o contrato com o seu termo a aproximar-se, a “subordinação jurídica” e o “temor reverencial” que fundamentam o princípio da indisponibilidade dos créditos laborais já não se aplicaria. Trata-se de uma ficção e de uma injustiça. Porque aqueles direitos foram constituídos no âmbito da relação de trabalho, enquanto ela vigorava, e porque essa relação de dependência não se extingue magicamente no dia em que se estabelecem as condições do fim do contrato.
Assim, o que a lei laboral dá aos trabalhadores com uma mão logo permite que seja retirado pelas empresas com a outra, ratificando como alegada expressão da liberdade de quem trabalha o que é na verdade um exercício de dominação patronal. Numa relação desigual como a de trabalho, cabe à lei proteger a parte mais frágil. Sacrificar direitos no altar de uma suposta “soberania da vontade” é uma operação de pura hipocrisia.
Acabar com estas declarações é da mais elementar justiça, determinando pela lei a sua nulidade e evidenciando que os direitos em causa são irrenunciáveis mesmo quando a relação de trabalho chega ao fim. Trata-se de eliminar esta mordaça para quem trabalha e de impedir que as empresas se apropriem de rendimentos dos trabalhadores. E é também, numa outra dimensão, uma singela mas bela homenagem a todos os que, ao longo de anos, como Jorge Leite, tanto se indignaram e se bateram contra a perversidade destas normas opressivas, destas imposições práticas da renúncia de quem trabalha aos seus próprios direitos.