Publicado por: Rogério Tomaz Jr. | 27/10/2010

Plano Real: a maior mentira da história econômica do Brasil

Plano Real: a maior mentira da história econômica do Brasil

Rogério Tomaz Jr. – jornalista
27 de outubro de 2010

“A mentira, como o óleo, flutua à superfície da verdade”.
Henryk Sienkiewicz

Uma mentira pode correr meio mundo antes que a verdade consiga calçar as botas”.
James callaghan

O torturador interrompe a sessão de suplícios e diz ao torturado:

– As regras mudaram. Em vez de dar choques no seu corpo inteiro, agora vamos usar apenas tapas e socos na cara. Com luva.

Essa mudança aconteceu em 1994 com a economia do Brasil. E em momentos distintos com Argentina, Chile, Equador, Bolívia, Colômbia, países do leste europeu, da Ásia e da África, além do restante da América Latina, obviamente.

Como explico em detalhes abaixo, assim a banca internacional decidiu e passou a impor em escala planetária, tendo à frente seu dileto porta-voz, o Fundo Monetário Internacional (FMI), ladeado pelo Banco Mundial e seus afilhados regionais.

O neoliberalismo nasceu enquanto ideologia e teoria econômica lá pelos fins da década de 1940, a partir da fundação da Sociedade Monte Pèlerin, organização cujo integrante mais célebre foi o austríaco Friedrich August von Hayek.

Pinochet e Tatcher: cobaia e vanguarda do neoliberalismo

Começou a ser colocado em prática no Chile ditatorial de Augusto Pinochet, na segunda metade dos anos 70. Logo em seguida, a Inglaterra de Margaret Tatcher tornou-se o primeiro campo de testes, entre os países ricos, para os postulados de Hayek & Cia. Tanto no Chile quanto na terra dos Beatles, os resultados foram muito exitosos (para os quem lucrou com as privatizações e desregulamentações trabalhistas, of course).

No final dos anos 80, formulou-se a Tábua dos Mandamentos neoliberais: o Consenso de Washington.

Antes disso, os bancos e instituições afins passaram várias décadas, desde o pós-guerra, acumulando muito, mas muito dinheiro com a instabilidade política e econômica do mundo. Reconstrução da Europa e do Japão, crise mundial do petróleo, crises agrícolas em alguns países importantes para o abastecimento global, conflitos armados em várias regiões e, pairando sobre tudo isso, a permanente tensão da Guerra Fria entre EUA e URSS.

Com o arrefecimento da Guerra Fria e o colapso econômico da União Soviética, que levou a potência a dar início à perestroika, conduzida por Mikhail Gorbachev, a roleta financeira internacional percebeu que seria necessária uma mudança de rumos na economia global.

Os países subdesenvolvidos, submetidos perenemente a crises que sufocavam suas economias, deveriam adotar novas diretrizes políticas e econômicas para terem alguma chance de superar as calamidades nas quais estavam mergulhados até o nariz.

Adivinha quem formulou tais diretrizes?

Para os bancos, passava a ser muito mais interessante operar em nações com economias estáveis, baixos índices de inflação e juros altos (mas não estratosféricos) financiando (ou extorquindo) o “desenvolvimento” destes países. Os lucros ainda seriam ótimos como no período anterior, mas os riscos eram muito menores, já que as hiperinflações e maxidesvalorizações das moedas poderiam levar, eventualmente, a convulsões sociais e a situações de autodestruição do sistema, eliminando temporariamente qualquer possibilidade de lucro.

Aí entra o Brasil.

Saindo de um governo de transição política como foi o de José Sarney, eficiente lambe-botas da ditadura que alcançou a presidência por acaso, pero no mucho, chegava a nossa hora de embarcar — em vagão de segunda classe, certamente — no novo trem da agenda financeira mundial.

Fernando Collor de Mello foi o ungido. O “Caçador de Marajás” foi rapidamente elevado à condição de estrela política nacional graças à propaganda da revista Veja e da TV Globo. Embora viesse de Alagoas, um estado pequeno, pobre e fortemente controlado por um punhado de famílias oligarcas, como ainda ocorre hoje, o homem que tinha “aquilo roxo” era apresentado como o salvador da pátria.

Seria com ele que o Brasil deveria se integrar à nova* e “moderna” ordem econômica global. O vagão onde o Brasil estava, porém, foi obrigado a parar antes de percorrer três estações (a primeira foi o confisco da poupança e a segunda foi a abertura indiscriminada da economia ao capital estrangeiro, o que fez meio mundo empresarial, sobretudo na indústria, quebrar).

Collor achou que o Brasil era do tamanho de Alagoas. Entrou em rota de colisão com muita gente graúda e foi escorraçado da poltrona à qual chegara com grande ajuda daquilo que hoje chamamos de PIG (Partido da Imprensa Golpista).

Assumiu o seu vice, o mineiro Itamar Franco, impulsionado pela intensa mobilização da sociedade civil em prol de transparência e ética na política.

Por um lado, muitas medidas “moralizadoras” e “cidadãs” foram implementadas, como a instituição da Comissão Especial de Investigação destinada a combater a corrupção no âmbito do governo e a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA), para responder à demanda gerada pela Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, coordenada pelo sociólogo Betinho.

Por outro lado, Itamar, com a área econômica dominada pelos quadros do jovem Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB, criado em 1988), recolocou em movimento, em ritmo acelerado, o trem que levaria o Brasil ao Jardim do Éden da tão decantada “globalização”.

Em maio de 1993 Fernando Henrique Cardoso assumia o Ministério da Fazenda. Em sua equipe, figuravam Persio Arida, André Lara Resende, Gustavo Franco, Pedro Malan, Edmar Bacha, Clóvis Carvalho. Tutti buona gente, sicuro!

O Plano Real, em verdade vos digo, foi apenas o nome escolhido pelos tucanos para aplicar no Brasil um pacote de medidas já há muito formuladas pelo FMI e seus controladores.

Três faces do neoliberalismo no Brasil: Fernando I, Itamar e Fernando II

Anunciado (com transmissão em cadeia nacional, lembro bem) em fevereiro de 1994 (embora as principais medidas e a nova moeda tenham sido implementadas apenas em julho), representava a nova esperança na superação de um “monstro” histórico: a inflação.

Ninguém da cúpula do governo — ou dos meios de comunicação tão antenados com a globalização, registre-se — informou que a inflação era algo em vias de forte queda em todos os cantos do planeta.

F(MI)HC

E muito menos o povo brasileiro tomou conhecimento sobre o que estava por trás daquele plano “genial” que garantiu os tucanos no governo federal por oito anos. Só fomos descobrir isso alguns anos depois, embora muitos, ainda hoje, façam de conta que fomos “salvos” por algumas mentes brilhantes que mora(va)m em Brasília.

O receituário básico dos planos de ajuste econômico do FMI era praticamente o mesmo, não importava que país fosse o “socorrido” da vez.

O jornalista Greg Palast, que se viu obrigado a sair do seu país (EUA) para conseguir ter suas reportagens publicadas (na Inglaterra), mostra isso no excelente livro “A melhor democracia que o dinheiro pode comprar”.

Livro indispensável

Palast teve acesso a vários documentos confidenciais do Banco Mundial e do FMI e expõe no livro a lógica — incompetente no aspecto econômico e criminosa sob o ponto de vista político — que guia as duas instituições e suas similares mundo afora.

Com um receituário padrão, baseado no Consenso de Washington, como já foi dito, o que mudava de país para país eram as condições exigidas para que os empréstimos das “estratégias de ajuste estrutural” fossem aprovados.

Em média, segundo Greg Palast, eram 114 condições impostas para a liberação dos empréstimos, embora nem sempre a verba chegasse ao país “socorrido”, pois muitas vezes era transformada em reservas internacionais — o que ocorreu, por exemplo, com o Brasil em 1998, no caso do maior empréstimo concedido pelo FMI até então, de US$ 41 bilhões, em episódio que contou com a influência decisiva do presidente dos EUA, Bill Clinton, e garantiu a reeleição de FHC.

Dentre essas “contrapartidas” exigidas por FMI e Banco Mundial, figuravam: privatização de empresas públicas/estatais na área de infraestrutura (telecomunicações, energia, água e esgoto, ferrovias etc.); “enxugamento” da máquina pública (demissões em massa); arrocho salarial (dessa o FHC gostou tanto que manteve por sete anos o funcionalismo público sem qualquer reajuste); desregulamentação de leis e direitos trabalhistas (que necessitava do desmantelamento prévio dos sindicatos), traduzida no Brasil pelo eufemismo da “flexibilização”; abertura do mercado ao capital estrangeiro (e aos produtos importados, item implementado já por Collor); juros elevadíssimos, entre muitos outros itens, que eram detalhados em setores específicos, de acordo com o contexto de cada país.

No Equador, em 2000, por exemplo, alguns dos itens exigidos foram a concessão à British Petroleum o direito de construir um oleoduto, a demissão de mais de 100 mil servidores públicos, aumento das tarifas de luz elétrica e de outros serviços essenciais, entre vários outras “condições” que totalizavam 167 itens.

Na Bolívia, também em 2000, milhares de pessoas foram às ruas de Cochabamba protestar contra o aumento abusivo dos serviços de água, resultado direto de acordos com o Banco Mundial. Consequência: várias pessoas mortas pela polícia de Hugo Banzer (que havia sido ditador e naquele ano era o presidente eleito) em resposta às manifestações públicas do episódio que ficou conhecido como “Guerra da Água”, que culminou com a expulsão de uma multinacional do país (confira aqui).

Demonstração calorosa ao FMI

Enfim, são muitos os exemplos disponíveis (tanto dos planos de ajuste quanto das reações aos mesmos): Argentina, países da África… a lista seria bem longa.

O importante é que você saiba que o Real foi apenas um entre tantos planos da dupla FMI/Banco Mundial para reorganizar o grande cassino das finanças internacionais.

Na próxima vez que algum tucano — ou petista (ou suposto esquerdista) conformado/dominado pelo discurso neoliberal — elogiar o Plano Real por ter acabado com a inflação, diga-lhe que se existir algum mérito esse deve ser dado a quem o merece: FMI e Banco Mundial. FHC foi apenas o marionete da vez que estes órgãos usaram no Brasil para nos inserir na nova ordem financeira em âmbito global (da qual escapam apenas raras e honrosas exceções).

Sem falar que a inflação não acabou. A inflação média entre julho de 1994 e junho de 2008, segundo o IBGE, foi de 227%. O litro da gasolina, até aquele momento, quando o Real completava 14 anos, havia subido mais de 300% (em Belo Horizonte, por exemplo, 338%**). A tarifa do telefone fixo, também em julho de 2008, apresentava aumento acumulado de 672%, mesmo índice do gás de cozinha. Em algumas cidades, o aluguel subiu mais de 500%. O pão francês, item básico da mesa do brasileiro, subiu 375% em BH, reajuste semelhante sofrido pelo feijão preto, entre muitos outros gêneros. Ou seja, a inflação não foi embora, definitivamente.

Embora os fatores que explicam as diferenças sejam vários e complexos, a taxa de inflação no Brasil ainda é o dobro ou triplo das taxas dos países desenvolvidos***.

Para concluir, deixo a sugestão do excelente post de Ricardo Horta mostrando (no tópico 3) as diferenças e o avanço da gestão econômica na era Lula em relação ao seu antecessor.

Continuamos sendo torturados ainda hoje, mas agora o método dos torturadores é a violência simbólica e psicológica (a tática do medo), o que é terrível e inaceitável, porém, indubitavelmente, é um considerável avanço para quem passou tanto tempo sendo esfolado vivo.

Rogério Tomaz Jr.
Jornalista

*Os princípios do neoliberalismo são basicamente os mesmos do liberalismo clássico. Ou, pelo menos, são fruto das mesmas teses centrais. A alcunha neoliberalismo — que desagrada os próprios neoliberais, lembremos — é apenas uma pequena distinção política a um ideário que, embora se apresente como “moderno”, é não apenas regressivo (em relação às conquistas obtidas e/ou consolidadas pelo conjunto da humanidade em meados do século XX) como também ultrapassado, algo que o liberalismo, em sua época, não foi.

**Fonte: http://www.pco.org.br/conoticias/ler_materia.php?mat=7322

***Para consultar taxas de inflação no mundo: http://www.indexmundi.com/g/g.aspx?v=71&c=br&l=pt

PS: Agradeço imensamente aos amigos Lúcio Mello, Tonho Biondi e Pedro Pomar, pelas opiniões, observações, contribuições e sugestões. Algumas incorporadas, outras não. De modo que a culpa pelo texto acima é do autor.


Respostas

  1. Muito bom, Rogério!

    • Valeu, João! Fiz algumas pequenas alterações que talvez você não tenha lido. Abrs!

  2. ADOREI…. Rogério, concordo plenamente com você.Abraços

  3. Já era!Hora de jogar a toalha.Mas não a deixe no chão. Mulher não gosta disso: http://t.co/Y3RyjD0

  4. Bola murcha!O Serra é do DEM, Serra é do DEM aperta o dedão no Vulcabrás 752 e dá uma bicuda na pelota,em direção à trave defendida por Rojas http://t.co/jiKk

  5. Valeu, Rogério. Parabéns pelo blog, um dia também vou morar no Maranhão, em alguma praia perto do Calhau… abs

    • Seu blog é muito bom! E espera um pouco pra ir morar em SLZ. A especulação tá forte. Apê na praia não sai menos de 1 milhão hoje… daqui a uns 10 anos (ou daqui a uns 30, quando penso em voltar) vai estar melhor, espero! rs Abrs!

  6. Rogério, para um jornalista você é um ótimo economista! hahahaha Sem a ironia que caberia numa frase como essa, claro. Realmente o post tá muito bom, desculpa demorar pra ler, mas tava com uma pilha de coisas pra fazer desde semana passada. Espero que seu post tenha contribuído para desmistificar essa história do plano real e ganhar uns votinhos pra Dilma. 🙂 O professor de economia da UFF, Theotônio dos Santos, tem alguns textos sobre esse tema que você tratou neste post. Sorte meu guri!!!! Abraço forte cabra da peste 🙂


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