Calculadoras EletrĂ´nicas

09/02/2021

Mudando a Abordagem da MatemĂ¡tica


Caminhava pelos corredores da escola quando vi, atravĂ©s de uma porta entreaberta, um colega de MatemĂ¡tica ensinando aos alunos extraĂ­rem o valor aproximado de uma raiz quadrada utilizando o algoritmo do carroĂ§Ă£o. No intervalo das aulas, fui conversar com o professor questionando-o sobre o porquĂª ensinar um mĂ©todo tĂ£o cansativo aos alunos se nĂ³s jĂ¡ dispĂºnhamos de calculadoras. Ele retrucou que o aluno poderia nĂ£o ter uma calculadora nas mĂ£os na hora em que precisasse do valor da raiz. Bem, Ă© mais fĂ¡cil ter uma calculadora nas mĂ£os do que uma caneta, quanto mais com a generalizaĂ§Ă£o das celulares, que tem a calculadora como um de seus recursos.

Nunca veremos a revoluĂ§Ă£o social ocorrer atravĂ©s da escola. A escola Ă© um aparelho ideolĂ³gico do Estado, uma reprodutora de valores. Isso nĂ£o significa que a escola nĂ£o tenha historicidade. É incabĂ­vel imaginar que a realidade contida dentro dos muros da escola Ă© disjunta daquela que se encontra do lado de fora. O mundo gira, e a escola tem que rodar com o mundo. Apesar disso, talvez por comodismo ou pela inĂ©rcia das engrenagens que movimentam a mĂ¡quina escola, parece que hĂ¡ um esforço para o isolamento das instituições, como se houvesse uma redoma isolando a escola do mundo.

Estava trabalhando com cĂ´nicas em uma escola particular na Zona Sul do Rio de Janeiro e, para ilustrar o que estava sendo estudado, apresentava o movimento dos astros no espaço. Deixei para abordar o fenĂ´meno do eclipse solar justamente em um dia no qual ocorreria um. Preparei um monte de chapas de radiografia para que os alunos pudessem olhar para o Sol sem risco para as vistas e fui pedir Ă  coordenaĂ§Ă£o para ir com a turma ao pĂ¡tio observar o eclipse. A coordenaĂ§Ă£o recusou dizendo que isso iria tumultuar a escola e parar a aula. Argumentei que eu estava exatamente abordando o fenĂ´meno, mas isso nĂ£o demoveu a coordenaĂ§Ă£o. Voltei para a sala e retornei ao eclipse no quadro-negro, enquanto um eclipse ocorria no pĂ¡tio da escola. Eu jĂ¡ havia visto exatamente esse fato em uma ilustraĂ§Ă£o do livro Cuidado, Escola!, mas eu pensei que fosse uma metĂ¡fora.

Um dos maiores exemplos da dificuldade que as escolas possuem de assimilar as transformações do mundo foi o advento do vĂ­deo cassete. Nunca consegui entender como se continuava fazendo muitas descrições, como, por exemplo, dos biomas brasileiros, tendo a possibilidade de apresentar as imagens dinĂ¢micas das descrições. Os vĂ­deos chegaram, desapareceram e, quando muito, tangenciaram os trabalhos nas escolas.

A MatemĂ¡tica nas escolas nĂ£o passa ao largo dessa inĂ©rcia, mas a força da HistĂ³ria Ă© maior que a resistĂªncia. Os logaritmos foram criados para servirem de calculadora. Eles transformam multiplicações em adições, potenciações em multiplicações, eles descem o nĂ­vel de dificuldades das operações. AtĂ© o fim da dĂ©cada de 1970, boa parte do esforço dos professores de MatemĂ¡tica na primeira sĂ©rie do Ensino MĂ©dio se concentrava no ensino de logaritmo. Com a popularizaĂ§Ă£o das calculadoras, essa funĂ§Ă£o do logaritmo tornou-se obsoleta. Se eu tiver que ensinar como se usa a tĂ¡bua de logaritmos, terei que recordar. A rĂ©gua de cĂ¡lculo nem se fala, eu nunca aprendi a usĂ¡-la, era um instrumento caro e, quando cheguei Ă  universidade, as calculadoras jĂ¡ estavam ficando populares.



Tanto o conteĂºdo abordado nas escolas quanto os mĂ©todos de abordagens dos conteĂºdos sofrem alterações devido Ă s exigĂªncias sociais. Inclusive eu nĂ£o sou favorĂ¡vel a separar tĂ£o categoricamente conteĂºdos de mĂ©todos. Qualquer tĂ³pico que se desenvolva em MatemĂ¡tica (ou em qualquer outra disciplina) nasce vinculado a um mĂ©todo de apreensĂ£o, de entendimento, de aprendizagem. NĂ£o existe conteĂºdo sem mĂ©todo. ConteĂºdo desvinculado de um mĂ©todo Ă© uma abstraĂ§Ă£o que sĂ³ tem a funĂ§Ă£o de organizar a Disciplina. Estudar um conteĂºdo de acordo com um novo mĂ©todo Ă© estudar novamente o conteĂºdo. De forma anĂ¡loga, Ă© defensĂ¡vel que o mĂ©todo sem um conteĂºdo Ă© uma abstraĂ§Ă£o com funĂ§Ă£o taxonĂ´mica. DeverĂ­amos criar a expressĂ£o "conteĂºdo-mĂ©todo". Mudanças no conteĂºdo ou no mĂ©todo (mĂ©todo-conteĂºdo) geram uma nova MatemĂ¡tica. As escolas sofrem transformações em suas abordagens por influĂªncias sociais. Portanto, as escolas estĂ£o, permanentemente, ensinando novas MatemĂ¡ticas. Isso justifica as diversas vezes que escutei reclamações de avĂ³s e pais que nĂ£o conseguiam ensinar aos netos e filhos porque tinham aprendido outra MatemĂ¡tica. Eles tinham razĂ£o.

As calculadoras eletrĂ´nicas geram uma nova MatemĂ¡tica. A primeira calculadora cientĂ­fica que tive foi uma Texas TI30, que eu comprei em 1979, usada, de um colega na universidade. Era uma calculadora que tinha visor com luzes de neon e usava bateria de nove volts. De lĂ¡ para cĂ¡, as transformações foram tremendas. As calculadoras tornaram-se muito baratas e todos os celulares dispõem de calculadoras comerciais e cientĂ­ficas. NĂ£o hĂ¡ motivo para evitar o uso de calculadoras. Eu acredito que o Ăºnico lugar no qual ainda se faz contas de dividir usando o algoritmo tradicional da divisĂ£o seja nas salas de aula. Nem os professores, fora das salas de aula, deixam de usar calculadoras. Entretanto, devem-se explorar os potenciais dessa nova MatemĂ¡tica que a calculadora gera, e nĂ£o tentar fazer o que era feito antes dela usando esse novo instrumento.

Era comum aos alunos perguntarem se podiam usar calculadoras nas avaliações. Eu sempre respondia com outra pergunta: posso montar uma prova para ser respondida com calculadora? Resolvi adotar calculadoras nas avaliações. Como havia o argumento de que os concursos pĂºblicos nĂ£o permitiam o uso de calculadoras (argumento que eu sĂ³ consigo justificar pela economia de trabalho por parte das operadoras de concursos), combinei com os alunos que uma avaliaĂ§Ă£o por bimestre seria sem calculadora. Para nĂ£o limitar a calculadora ao uso das quatro operações, eu tinha que trabalhar as possibilidades que as calculadoras apresentavam. Decidi usar calculadoras comerciais no Ensino Fundamental e calculadoras cientĂ­ficas no Ensino MĂ©dio. Comprei diversas marcas de calculadoras tanto comerciais quanto cientĂ­ficas e comecei a estudar suas funções. As calculadoras comerciais nĂ£o trouxeram problemas, todas tinham praticamente o mesmo programa. O que distinguia uma das outras eram as teclas de memĂ³ria, problema totalmente contornĂ¡vel, e a presença, ou nĂ£o, da tecla de raiz quadrada. Para contornar esse Ăºltimo problema, eu dei a "volta na pedra": pedia para que os alunos adquirissem uma calculadora com a tecla de raiz quadrada. JĂ¡ as calculadoras cientĂ­ficas apresentavam uma variedade de funções imensa. Havia calculadoras alfa-numĂ©ricas (calculadoras que aceitavam textos em lĂ­ngua corrente), calculadoras com muitos nĂ­veis de memĂ³ria e calculadoras que traçavam grĂ¡ficos. Se eu permitisse que cada aluno usasse a calculadora que bem entendesse, quem tivesse dinheiro para comprar a calculadora mais sofisticada sairia na vantagem. Resolvi padronizar as calculadoras, todos usariam a mesma calculadora. Fui a uma papelaria perto da escola e escolhi uma calculadora barata que todos os alunos comprariam. Cabia ao dono da papelaria providenciar o estoque da calculadora escolhida que se faria necessĂ¡rio, o que ele fez com todo o prazer (ganhei muita calculadora das papelarias, eu acho que eles gostavam de mim). Para a calculadora comercial, criei um material que orientava o seu uso. Para as cientĂ­ficas, como a calculadora escolhida mudava de um ano para outro ou de uma escola para outra, eu trabalhava sem material impresso.

Eu mantinha sempre um estoque de calculadoras para emprestar aos alunos que esqueciam a sua ou para aqueles que, por algum motivo, as calculadoras apresentassem problemas. Em uma avaliaĂ§Ă£o nĂ£o era permitido emprestar a calculadora, elas possuem memĂ³ria, muito menos usar a calculadora dos celulares, por motivos Ă³bvios.

Trabalhar com calculadoras Ă© bem distinto do trabalho com lĂ¡pis e papel. Uma calculadora com oito dĂ­gitos trabalha somente com nĂºmeros racionais no intervalo de - 99 999 999 a            + 99 999 999, e nĂ£o sĂ£o com todos eles. Ela nĂ£o registra qualquer fraĂ§Ă£o que gere dĂ­zimas periĂ³dicas. A fraĂ§Ă£o 1/3 aparece como 0,3333333, uma aproximaĂ§Ă£o. Todo nĂºmero com mais de sete casas decimais, em uma calculadora de oito dĂ­gitos, Ă© uma aproximaĂ§Ă£o. As calculadoras cientĂ­ficas obedecem Ă  ordem das operações aritmĂ©ticas. Se for digitado 2 + 2 Ă· 2 em uma calculadora cientĂ­fica, ela retorna como resultado 3, o que Ă© o correto. Entretanto, na calculadora comercial isso nĂ£o acontece, ela realiza as operações na ordem em que forem digitadas. Assim, 2 + 2 Ă· 2 tem como retorno 2, o que estĂ¡ errado. A ordem das operações deve ser forçada na comercial. Essas e tantas outras caracterĂ­sticas prĂ³prias das mĂ¡quinas me levaram a criar um material para abordar o tema com os alunos.

As tecnologias modernas, na qual se incluem as calculadoras, sĂ£o expansões de nossas limitações e criam possibilidades que seriam impensĂ¡veis sem elas, mas jamais serĂ£o a panaceia da EducaĂ§Ă£o. SerĂ£o sempre mediadoras das Relações Humanas, o lugar no qual se concretiza a EducaĂ§Ă£o.