PUBLICIDADE
Topo

Reinaldo Azevedo

Senhora dos Absurdos: "Tá com fome, pobre? Coma resto e alimentos vencidos"

O ator Paulo Gustavo na pele da "Senhora dos Absurdos". A caricatura, no que respeita à obscenidade, ainda é mansa quando confrontada com os fatos - Reprodução/Youtube-Multishow
O ator Paulo Gustavo na pele da "Senhora dos Absurdos". A caricatura, no que respeita à obscenidade, ainda é mansa quando confrontada com os fatos Imagem: Reprodução/Youtube-Multishow
Reinaldo Azevedo

Colunista do UOL

18/06/2021 08h07

Meu bom pobre com fome,

os ministros Paulo Guedes (Economia) e Tereza Cristina (Agricultura) têm a solução para os seus problemas. Isso ficou claro no Fórum da Cadeia Nacional de Abastecimento, promovido pela Associação Brasileira de Supermercados. Por onde começo? Por Guedes achando que o brasileiro come com menos frugalidade dos que os europeus — isto é, come muito — porque não passou por guerras, acrescentando que os restaurantes deveriam entregar as sobras aos famintos? Ou por Tereza, que está pensando em mudar a regra sobre a validade dos alimentos? Para fazê-los chegar à pobreza, claro!

Ah, comecemos pelo ministro. Ele tem aquele seu estilo agitado de dizer generalidades as mais escandalosamente reacionárias, mas com um ar ligeiramente professoral — ou melhor: professoral-ligeiro —, simulando um pensamento profundo; tudo vazado num tom, assim, de quem está um tantinho escandalizado porque o interlocutor ainda não teria percebido o que ele já percebeu.

Acontece que o "óbvio" de Guedes, não raro, é alguma aberração de quem não tem a menor intimidade com um país de 210 milhões de habitantes, em que 110 milhões vivem no que os especialistas chamam "insegurança alimentar".

Atenção! Os ministros cujas falas vão abaixo exercem cargos importantes no país que é o terceiro maior produtor de alimentos do mundo — só perde para EUA e China — e que é o maior exportador.

O pensador resolveu dar a sua receita para acabar com a fome, que voltou a assumir proporções alarmantes no país. Prestem atenção à proposta e à filosofia que a embasa:
"O prato [de comida] de um classe média europeu, que já enfrentou duas guerras mundiais, são pratos relativamente pequenos. E os nossos aqui, nós fazemos almoços onde, às vezes, há uma sobra enorme. Isso vai até o final, que é a refeição da classe média alta, até lá há excessos. (...) Como utilizar esses excessos que estão em restaurantes e esse encadeamento com as políticas sociais, isso tem que ser feito. Toda aquela alimentação que não for utilizada durante aquele dia no restaurante, aquilo dá para alimentar pessoas fragilizadas, mendigos, desamparados. É muito melhor do que deixar estragar essa comida toda".

Falou o tiozão do churrasco. Mas não de um churrasco qualquer. Tirinhas de carne, bem fininhas. Nada de se empanturrar. Pensem na economia de guerra, brasileiros! Sua fala transcrita mereceria um pequenino tratado sobre a alienação. O que será que ele quer dizer quando afirma, referindo-se à classe média alta, que "até lá há excessos"? Explico: Guedes está dizendo que, no Brasil, até os ricos têm um hábito muito arraigado, típico dos pobres: comer demais!

E, como vocês sabem, alguns desses pobres, na modalidade "empregadas domésticas", também tinham a mania de ir para a Disney.

É o ministro que, na reunião do Conselho de Saúde Suplementar, ao lamentar a falta de recursos do SUS e, na prática, defender ainda menos recursos, disse em tom meio lamentoso:
"Todo mundo quer viver 100 anos, 120, 130 ". E concluiu que "não há capacidade de investimento para que o Estado consiga acompanhar".

E como diminuir o financiamento do SUS e, ainda assim, atender a esse pobre que come e vive demais?

Ele também deu a resposta?
"Você é pobre? Você está doente? Está aqui seu voucher. Vai no Einstein se você quiser".

BOTOX DE POBRE
Os gênios, parece, planejam um modo de nossos pobres também terem acesso à toxina botulínica: por meio do botulismo. É bem verdade que a doença mata. Mas, como já disse o chefe de Tereza Cristina e Guedes, "todo mundo morre um dia; nem sente".

A ministra também teve ideias. Ela quer mudar as regras para o alerta de vencimento dos alimentos -- mas sem rebaixar exigências, por favor! Afirmou:
"A gente poderia fazer uma adaptação, sem precarizar nada. Podemos rever uma série de fatores e gargalos, principalmente em relação à validade dos nossos alimentos. A pandemia nos trouxe esse tema de maneira perceptível, temos que agir rapidamente", afirmou."

A ideia ainda não está formatada, mas ela passa, claro!, por estender o prazo de validade. Como fazê-lo? Vender comida vencida? Isso não pegaria muito bem, né? Quem mantém produtos assim na gôndola pode ser multado.

O governo poderia comprar dos supermercados distribuir aos pobres alimentos perto do vencimento — com o risco imenso de ser consumido depois da data? Ou é preferível mudar a inscrição na embalagem, criando uma tradução para o "Best before": "Melhor consumir antes de tal mês"? Notem a sutileza: é "melhor", mas aí o pobre decide se compra um produto mais barato, depois do "before", ou paga preço cheio para consumi-lo a partir do "before".

ESCÂNDALO MORAL
É um escândalo moral. Ali estavam os dois ministros aos quais concerne a brutal inflação de alimentos que vive o país -- da ordem de 15%. Há produtos que aumentaram 50%. O Brasil tem hoje o menor consumo de carne em 25 anos. E, por óbvio, também cumpre a eles, no governo, primariamente, dar uma resposta à fome.

Cuidado, meu bom pobre! Junto com o conteúdo de uma embalagem vencida, pode vir a tal bactéria Clostridium botulinum. O nome do programa poderia ser "Bolsa Botulismo".

A fome voltou a ser um problema sério no Brasil, e essa gente não tem a menor noção do que está falando. Não temos exatamente um governo, mas uma associação de lobistas sem compromisso com o interesse público. Pouco importa se está capitalizando a Eletrobras ou tratando da fome.

Não por acaso, esse é o governo que extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional logo na primeira semana.

Havia um plano para quem tem fome: restos e alimentos vencidos.

ENCERRO
O diretor, ator e humorista Paulo Gustavo, que morreu de covid-19 no dia 4 de maio, criou uma personagem chamada "Senhora dos Absurdos". É uma perua rica e agressiva, que diz os disparates mais abjetos e tem ódio patológico de pobres.

Paulo Gustavo, infelizmente, está morto.

A Senhora dos Absurdos está no poder.