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Guedes diz que Fies bancou universidade até para filho de porteiro que zerou o vestibular

Sem saber que era gravado, ministro da Economia afirmou que o governo federal deu bolsas para 'todo mundo' e que 'desastre' enriqueceu meia dúzia de empresários

Mateus Vargas, O Estado de S.Paulo

29 de abril de 2021 | 15h57

BRASÍLIA - Sem saber que era gravado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, reclamou que o governo federal deu bolsas em universidades para “todo mundo” por meio do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Segundo o ministro, que não citou detalhes ou provas, até quem não tinha a “menor capacidade” e "não sabia ler nem escrever" entrou na graduação por esse caminho. Guedes disse que o filho do seu porteiro foi beneficiado mesmo após zerar o vestibular, ainda que o programa tenha exigências de nota mínima para aprovar o financiamento.

Para o ministro, o Fies foi um “desastre” que enriqueceu meia dúzia de empresários. As falas de Guedes foram feitas em reunião do Conselho de Saúde Suplementar (Consu), na terça-feira, 27. “O porteiro do meu prédio, uma vez, virou para mim e falou assim: 'Seu Paulo, eu estou muito preocupado'. O que houve? 'Meu filho passou na universidade privada'. Ué, mas está triste por quê? 'Ele tirou zero na prova. Tirou zero em todas as provas e eu recebi um negócio dizendo: parabéns, seu filho tirou...' Aí tinha um espaço para preencher, colocava 'zero'. Seu filho tirou zero. E acaba de se endereçar a nossa escola, estamos muito felizes”, disse Guedes.

Além do ministro da Economia, participaram da reunião o ministro da Saúde, , da Casa Civil, , da Justiça, . Ainda acompanharam o debate representantes do Ministério Público Federal (MPF) e da . No mesmo encontro, e desenvolveu vacinas menos eficazes do que as dos EUA. Já Ramos afirmou que se vacinou “escondido” e que incentiva o presidente a se imunizar por temer pela vida do mandatário. Mais tarde, Guedes se desculpou sobre a menção à China e Ramos negou que tentou passar despercebido ao se vacinar.

Queiroga alertou os colegas que a reunião estava sendo gravada após mais de 40 minutos de debate. “Só não manda para o ar, por favor”, disse Guedes. A Saúde chegou a transmitir parte das falas dos ministros, mas retirou o vídeo das suas redes sociais. O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) apresentou requerimento na no Senado para ter acesso à íntegra do encontro.

Após citar o suposto caso do filho do porteiro, Guedes disse que “botaram todo mundo” na universidade. “Deram bolsa para quem não tinha a menor capacidade. Não sabia ler, escrever. Botaram todo mundo. Exageraram. Foi de um extremo ao outro”, afirmou o ministro.

O Fies é um programa do governo federal que concede financiamento para estudantes cursarem o ensino superior em universidades privadas. Pelas regras mais recentes, pode receber o financiamento quem participou do , a partir de 2010, e obteve média aritmética das provas igual ou superior a 450 pontos e não zerou a redação. Criado em 1999 e ampliado em 2010, o programa já teve critérios diferentes. Guedes não citou quando o suposto filho de seu porteiro foi beneficiado. O recorde de vagas ofertadas pelo Fies ocorreu em 2014: 732 mil. Em 2020, foram apenas 100 mil.

As críticas de Guedes ao Fies foram feitas no momento em que o ministro defendia que a iniciativa privada é mais eficiente que o poder público. O programa, porém, foi apontado como exemplo de que é preciso ter cautela ao subsidiar o acesso ao serviço privado. “Foi de um extremo a outro”, disse o ministro.

Guedes afirmou que percebeu a deficiência da rede pública e passou a investir, décadas atrás, na educação privada. “Acho que vai acontecer a mesma coisa na saúde”, disse Guedes. Ele chegou a dizer que uma solução para garantir o acesso da população aos serviços de saúde seria a entrega de “vouchers”. "Você é pobre? Você está doente? Está aqui seu voucher. Vai no Einsten, se você quiser", declarou o ministro, em referência ao Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.

Para ilustrar a crise na educação, Guedes disse que as universidades estão em estado “caótico”. “Paulo Freire. Ensinando sexo para criança de 5 anos. Todo mundo... maconha, bebida, droga. Dentro da universidade. Estado caótico. Eu prevejo o mesmo fenômeno para a saúde”, disse o ministro.

Após descobrir que estava sendo gravado, Guedes disse que as críticas tratavam apenas de algumas universidades. Ele afirmou ainda que estudou em escolas públicas e disse ser a "prova viva" de que com "algum investimento" uma pessoa pode sair da classe média baixa e ter "sucesso na vida profissional". Procurada, a Economia não se manifestou sobre as falas de Guedes.

Para o ministro, o Estado brasileiro "quebrou" e não tem capacidade de acompanhar inovações na educação e saúde. "Quebrou no exato momento em que o avanço da medicina, não falo nem da pandemia. Falo do direito à vida. Todo mundo quer viver 100 anos, 130 anos. Todo mundo (quer) procurar serviço público. E não há capacidade instalada no setor público para isso. Vai ser impossível", disse Guedes.

Doutor em Educação e professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), Gregório Grisa afirma que a manifestação de Guedes é "preconceituosa" e sem respaldo em dados do Fies. O professor pondera que o programa tem problemas, passou por expansão descoordenada e encolheu por impactos da crise econômica, mas afirma que dados de evasão entre alunos com o financiamento, por exemplo, são até menores do que dos estudantes que não tem o apoio do governo. Além disso, as notas do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), que avalia concluintes da graduação, são niveladas. "Os alunos (com contrato do Fies) partem de patamares diferentes, têm menor renda, e conseguem nota igual a de estudantes regulares no Enade", afirma Grisa.

Ex-secretário de Educação Superior (2013-2014) e professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Paulo Speller afirma que o Fies ajudou a ampliar o acesso à universidade aos estudantes mais pobres. “O número de pessoas alfabetizadas e com formação vem crescendo. O acesso ao ensino superior faz diferença na renda das pessoas”, afirma. Ele disse que Guedes pode ter usado um exemplo exagerado ao citar que uma aluno com nota zero foi aprovado no Fies. "Com nota zero, até onde estou informado, é impossível. Eventualmente alguma faculdade particular pode até facilitar a entrada, mas não com bolsa do poder público. Sempre há um critério", disse.

Na reunião, Guedes declarou que vê duas formas de "ajudar o pobre" neste cenário de crise do setor público. "Uma é direto na veia. Você dá o dinheiro pro pobre. (O auxílio emergencial) Foi a maior redução de pobreza em 40 anos no Brasil. Outra é a forma antiga de Brasília, que é assim: monta um ministério. O ministério passa o dinheiro para o banco público. Repassa para uma agência autônoma (...) Um dia, dos 100 que você emprestou chega 1 no pobre", declarou o ministro.

Já para ilustrar a suposta ineficiência do SUS, Guedes disse que um paciente fica "8 dias deitado" no hospital público, depois de uma cirurgia, enquanto a alta ocorre na manhã seguinte em uma unidade privada. "No hospital privado, chega e bate na porta: 'Fez cirurgia ontem de apendicite?' De manhã cedo, 'está com febre?' 'Não'. 'Vamos embora. Vamos sair da cama aí, pô. Vai ficar na cama, não. Desalojar.' No hospital público o cara fica 8 dias deitado, aí tem uma fila no corredor querendo entrar. Não tem gestão", declarou Guedes.

Toda a fala de Guedes começou após o ministro demonstrar surpresa e apoio ao descobrir que operadoras de saúde têm de fazer reembolso ao SUS por serviços prestados na rede pública a usuários dos planos privados.

O ministro da Saúde disse que as declarações do ministro reforçam a agenda liberal do governo Bolsonaro, mas afirmou que universidades públicas formam os melhores profissionais de saúde no País e lideram pesquisas na área. Queiroga disse que falta transparência em dados do setor privado, como de internações e mortes pela covid-19.

"Vamos ficar envergonhados da mortalidade do público", disse Guedes, sobre a possibilidade de ter mais dados da rede complementar. "Quando mais a gente conseguir descarregar para o outro lado, melhor", completou o ministro, em referência a aumentar o número de clientes dos planos privados. Na reunião, Guedes disse que o governo deve fazer serviços públicos de "elite". "Que sejam as melhores possíveis. Mas não tenhamos a ilusão de que será possível fazer uma rede pública para atender todo mundo", afirmou o ministro.

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Reforma no ensino médio prevista para 2022 tem atraso nos Estados

Novo modelo exige mudanças nos currículos para incluir disciplinas eletivas. São Paulo já conta com turmas no novo formato

Ocimara Balmant e Alex Gomes, especiais para o Estadão

29 de abril de 2021 | 15h00

O ano que vem é o prazo para que 7,5 milhões de adolescentes brasileiros frequentem uma escola com currículo flexível, que atenda aos variados interesses e aptidões dessa população, com idade entre 15 e 17 anos. É que, em 2022, as redes pública e particular precisam estar com o Novo Ensino Médio implementado, segundo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

O Novo Ensino Médio é uma resposta a uma escola tida como desinteressante pelos jovens e, portanto, com altos índices de evasão. O modelo incentiva o protagonismo dos alunos, apresenta diferentes trilhas de conhecimento definidas em itinerários formativos e substitui a estrutura tradicional das disciplinas por formatos flexíveis e integrados de aplicação de conhecimentos e habilidades.

No entanto, a menos de um ano do prazo para que tudo isso saia do papel, os dados sinalizam que pode haver atrasos. Dados do Movimento pela Base – entidade não governamental que mantém um observatório da BNCC – mostram que oito dos Estados possuem os currículos do médio já homologados, dois têm currículos aprovados aguardando homologação e outros dez estão com os seus currículos em avaliação nos conselhos estaduais de educação. 

Sete Estados ainda não enviaram currículo para avaliação: cinco estão realizando ou finalizaram consultas públicas de seus referenciais curriculares e dois ainda estão no processo de construção de seus referenciais curriculares.

A implementação do modelo vai além da construção de currículos alinhados à BNCC e com itinerários formativos. As redes estaduais precisam tomar outras decisões, por exemplo, sobre alocação de professores e mudanças no sistema de matrícula. “Faz falta um cronograma nacional para implementação, apesar de o MEC (Ministério da Educação) não ter esta atribuição definida em lei”, afirma Carlos Lordelo, coordenador de projetos para o ensino médio no Movimento pela Base. “De qualquer forma, deveria haver um cronograma com prazos para as coisas ocorrerem, como o envio de materiais didáticos e datas de avaliações alinhadas. São decisões que cabem ao governo federal e afetam os Estados.”

Em São Paulo, as turmas de 1.º ano do médio no Estado já estão, a partir de 2021, sendo reguladas por diretrizes definidas no Currículo Paulista. “Projetamos para meados de 2021 um dos momentos mais importantes: a escolha dos itinerários”, diz Gustavo Blanco de Mendonça, coordenador do ensino médio da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. “Faremos uma pesquisa com os alunos na rematrícula no segundo semestre. Um grande desafio é ajudar os alunos a entenderem o que é o novo ensino médio, para que possam fazer escolhas que tenham sentido para eles.”

Situação atual

  • Currículos do Novo Ensino Médio homologados: São Paulo, Pernambuco, Amapá, Distrito Federal, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraíba e Mato Grosso do Sul
  • Currículos aprovados esperando homologação: Mato Grosso e Santa Catarina
  • Currículos em avaliação: Acre, Goiás, Amazonas, Piauí, Sergipe, Tocantins, Paraná, Rio de Janeiro, Roraima e Rio Grande do Sul
  • Consultas públicas sobre referenciais curriculares em andamento: Ceará, Maranhão, Alagoas, Pará e Rondônia
  • Construção de referenciais curriculares ainda em processo: Bahia e Rio Grande do Norte

Teste

A meta é que o aluno tenha acesso aos eixos formativos que escolher em um raio máximo de dois quilômetros da residência. A implementação tem referências em programas pilotos implementados em 2020, com processo de flexibilização curricular em 198 escolas e testes do itinerário de formação profissional em 131 unidades. 

O piloto trouxe alguns apontamentos, como a predileção pelo itinerário profissionalizante. Por isso, a projeção da secretaria é oferecer a opção em pelo menos 30% das escolas – hoje chega a 10% da rede. “Jovens de 16 anos que precisam entrar no mercado de trabalho podem ter a formação profissional em um único turno e realizar atividades como Jovem Aprendiz no contraturno”, diz Mendonça.

Além das Escolas Técnicas Estaduais (Etecs), a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo tem parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) para a oferta do eixo de formação técnica e profissional. A entidade traz a experiência de décadas de atuação no ensino profissionalizante e, desde 2019, reformulou o ensino médio com elementos da BNCC, como as componentes curriculares definidas a partir das áreas de conhecimento (veja ao lado quais são elas). “O trabalho com projetos é o fio condutor da metodologia, contemplando, a cada ano, uma intencionalidade formativa: autoconhecimento, emancipação e autonomia”, diz Melina Sanjar, gerente de desenvolvimento e responsável pelo ensino médio técnico do Senac São Paulo.

Atualmente o Senac oferece três cursos: o Técnico em Informática, que capacita o aluno a realizar manutenção de computadores, operação de redes e desenvolvimento de aplicativos; o Técnico em Administração, em que ele é preparado para atuar em áreas como gestão de pessoas, logística, vendas, finanças e marketing; e o Técnico em Multimídia, que trata dos campos de comunicação, design, tecnologia e artes. “Os alunos discutem como a tecnologia pode solucionar demandas sociais existentes. Por isso, desenvolvem projetos que buscam transformar a realidade local por meio de recursos digitais que promovem a construção de um mundo mais sustentável, diverso e justo.”

Eixos formativos

A Lei do Novo Ensino Médio estabelece a carga horária de 3 mil horas totais ao longo dos três anos desta etapa, ampliando as 2,4 mil horas estipuladas anteriormente. Também determina que, dessas 3 mil, 1,8 mil horas devem ser destinadas para o aprendizado determinado pela BNCC, que é comum e obrigatório para todos. No restante da carga horária, de 1,2 mil horas, a chamada parte flexível, os alunos poderão escolher itinerários formativos, ou seja, poderão decidir o que irão estudar de acordo com seus interesses.

  • Linguagens e suas tecnologias
  • Matemática e suas tecnologias
  • Ciências da natureza e suas tecnologias
  • Ciências humanas e sociais aplicadas
  • Formação técnica e profissional

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