A Triste História da Hidrelétrica de Belo Monte IV: Dos Planos em Evolução à “Força Demoníaca”
Em setembro de 2009, o Ministro das Minas e Energia Edson Lobão alegou que a aprovação ambiental da hidrelétrica de Belo Monte esteja se atrasando devido a uma “força demoníaca” (1). Infelizemente, a demora se explica pela falta de lógica da propria obra, pelos seus severos impactos potenciais, e pela falta de cumprimento de várias exigências legais. A triste história de Belo Monte continua.
Planos em Evolução
Foram feitas mudanças importantes na configuração da hidrelétrica de Belo Monte entre o primeiro plano (1989) e o segundo (2002). O reservatório foi reduzido de 1.225 para 440 km2, colocando o reservatório principal (o “Reservatório da Calha”) a montante da confluência do rio Bacajá. A conseqüência principal disto era evitar a inundação de parte da Área Indígena Bacajá, que, de acordo com o Artigo 231, Parágrafo 3 da constituição brasileira de 1988, significaria que o projeto requereria uma votação no Congresso Nacional. Uma votação no Congresso implicaria em uma demora significante e, provávelmente que a discussão pública dos impactos da represa e as suas implicações necessariamente se tornaria muito mais ampla, não necessariamente com um resultado favorável para o desenvolvimento hidrelétrico do Xingu.
A demora na construção de Belo Monte e a revisão dos planos tinham o efeito benéfico de melhorar as vantagens técnicas da represa substancialmente. Em lugar de uma configuração tradicional com a usina de força localizada ao pé da barragem, como no plano de 1989 para Kararaô [Belo Monte], o plano de 2002 para Belo Monte tiraria proveito do local, sem igual, para desviar lateralmente a água por uma série de canais e leitos de igarapés inundados (o “Reservatório dos Canais”) para a usina de força principal a uma elevação mais baixa, a jusante da grande volta do rio Xingu, beneficiando da queda em elevação à grande volta, assim requerendo a construção de uma barragem menor (o Sítio Pimentel). Além disso, a demora permitiu a descoberta de erros técnicos importantes na cartografia topográfica da área que aumentaram consideravelmente as estimativas da quantidade (e custo) da escavação necessária para o canal de adução e para os vários canais de transposição dentro do Reservatório dos Canais. As estimativas da quantidade de escavação que estaria em pedra sólida também aumentaram (2).
Uma revisão adicional do plano foi feita visando prover justificativa para derrubar o embargo judicial que impedia a Eletronorte de proceder com a barragem. O plano alternativo reduziria a capacidade instalada, pelo menos em uma fase inicial. Configurações foram consideradas com 5.500, 5.900 e 7.500 MW (3). No entanto, em 2005, o Congresso Nacional aprovou construção de Belo Monte, e os desenhos revisados com potências mais modestas para Belo Monte foram abandonados sem alarde, com o plano atual até ultrapassando um pouco a potência prevista no plano de 2002, ficando em 11.233,1 MW (4, 5). A pequena diferença da potência no plano de 2002 é devido ao aumento da capacidade instalada da usina suplementar (que turbina água destinada para a vazão sanitária na Volta Grande do Rio Xingu) de 181,3 para 233,1 MW.
Deveria ser lembrado que uma evolução contínua dos planos representa uma tática comum em projetos de desenvolvimento amazônico, assim permitindo que os proponentes possam responder a qualquer crítica que seja levantada, dizendo que os críticos estão desinformados sobre os planos atuais. No entanto, os projetos costumam avançar para produzir essencialmente os mesmos impactos como os que foram questionados desde o princípio.
Tem havido várias tentativas do setor elétrico de desqualificar críticas aos seus planos, especialmente com relação ao rio Xingu, afirmando que os críticos são “desatualizados”. Isto lembra fortemente das justificativas usadas com freqüência pelas autoridades militares norte-americanas durante a Guerra do Vietnã, quando costumava responder críticas alegando que somente eles, os militares, sabiam da situação atual no local, e que os EUA estavam ganhando a guerra. Evidentemente, a história desmentiu essas afirmações depois. A lição disso deve ser que somente as informações públicas têm validade.
Os Impactos de Represas Rio Acima
“Barrageiros”, ou construtores de barragens, representam uma classe a parte na sociedade brasileira (6, 7). A barragem de Belo Monte tem um lugar especial na cultura dos barrageiros. Um dos engenheiros envolvidos no planejamento da barragem explicou a natureza especial da obra assim: “Deus só faz um lugar como Belo Monte de vez em quando. Este lugar foi feito para uma barragem”. Com 87,5 m de queda e uma vazão média de 7.851 m3/segundo (média no período de 1931 a 2000), é difícil de encontrar outro local como Belo Monte. Apesar da variação sazonal alta no fluxo d’água, que diminui o potencial de energia que o local (por si só) pode oferecer, a questão principal levantada pela hidrelétrica de Belo Monte é mais profunda que os impactos diretos no local do reservatório: é o sistema pelo qual as decisões sobre construção de barragens acontecem. Para que os benefícios retratados pelos promotores de Belo Monte pudessem ser alcançados pela sociedade brasileira, seriam necessários ainda muitos avanços no sistema de governança para que impactos sociais e ambientais desastrosos fossem evitados, em troca do pouco benefício para a população brasileira.
A existência de Belo Monte forneceria a justificativa técnica para a construção de represas a montante que inundariam vastas áreas de terra indígena, praticamente todas sob floresta tropical. Com a inundação anual de uma área de deplecionamento de 3.580 km2 Babaquara proveria uma fonte de carbono permanente para emissões significativas de metano, um gás poderoso de efeito estufa (8, 9). Os benefícios sociais obtidos em troca destes impactos são muito menos que as declarações oficiais insinuam porque muito da energia seria usada para subsidiar os lucros de companhias multinacionais de alumínio que empregam uma mão-de-obra minúscula no Brasil. Por exemplo, a usina de Albrás, em Barcarena, Pará emprega apenas 1.200 pessoas, mas usa mais eletricidade do que a cidade de Belém (10, 11). O setor de alumínio no Brasil emprega apenas 2,7 pessoas por GWh de eletricidade consumida, triste recorde apenas superado pelas usinas de ferro-liga (1,1 empregos/GWh), que também consomem grandes quantidades de energia para um produto de exportação (12).
A hidrelétrica de Belo Monte propriamente dita é apenas a “ponta do iceberg” do impacto do projeto. O impacto principal vem da cadeia de represas a montante, presumindo que o embalo político iniciado por Belo Monte aniquilaria o sistema de licenciamento ambiental, ainda frágil, do Brasil. Este é o quadro provável da situação para a maioria dos observadores não ligados à indústria hidrelétrica. Das represas a montante, o reservatório de Babaquara, com duas vezes a área inundada da barragem de Balbina, seria o primeiro a ser criado. Autoridades do setor elétrico se esforçam para separar o projeto Belo Monte propriamente dito do seu impacto principal, que é o de incentivar a construção das megabarragens planejadas a montante.
Embora estudos iniciais, completados em 1989, tenham analisado o projeto para Belo Monte com inclusão dos benefícios da regularização da vazão por represas a montante, a dificuldade em obter uma aprovação rápida logo ficou patente às autoridades do setor elétrico. Um estudo novo foi elaborado, então, para Belo Monte sem a presunção da regularização da vazão por represas a montante. O estudo revisado (de 2002) afirma:
O estudo energético em questão considera apenas a existência do Complexo Hidrelétrico Belo Monte no rio Xingu, o que acarreta que o mesmo não aufira qualquer benefício de regularização a montante. Embora os estudos de inventário hidrelétrico do rio Xingu realizados no final da década de 70 tivessem identificado 5 aproveitamentos hidrelétricos a montante de Belo Monte, optou-se por não considerá-los nas avaliações aqui desenvolvidas, em virtude da necessidade de reavaliação deste inventário sob uma nova ótica econômica e sócio-ambiental. Frisa-se, porém, que a implantação de qualquer empreendimento hidrelétrico com reservatório de regularização a montante de Belo Monte aumentará o conteúdo energético dessa usina (13).
Em outras palavras, embora uma decisão política tenha sido tomada para restringir a análise oficial somente à Belo Monte como uma conveniência necessária para obter a aprovação do projeto, as vantagens técnicas de construir também as represas a montante (especialmente Babaquara) permanecem as mesmas. Na realidade, nem a Eletronorte nem qualquer outra autoridade governamental prometeram deixar de construir essas barragens, mas apenas adiar uma decisão sobre elas. Este é o ponto crucial do problema.
Todo mundo já ouviu o provérbio do “camelo-na-barraca”: um beduíno acampado no deserto pode ser tentado a deixar o seu camelo pôr a cabeça dentro da barraca, à noite, para se proteger de uma tempestade de areia. Mas ao acordar na manhã seguinte, com certeza o homem encontrará o camelo de corpo inteiro dentro da barraca. Esta é exatamente a situação com Belo Monte: uma vez que a Belo Monte comece, nós, provavelmente, vamos acordar e encontrar Babaquara já instalada.
Essa estratégia também é visível no próprio caso de Belo Monte. O estudo de viabilidade admite que
“…os serviços de infra-estrutura (acessos, canteiros, sistema de transmissão, vila residencial, alojamentos) terão início tão logo a sua licença de instalação seja aprovada, o que deve ocorrer separadamente da aprovação da licença para as obras civis principais, no decorrer do denominado ano “zero” de obra” (14).
Isto significa que o estudo ambiental e o processo de licenciamento para a barragem de Belo Monte são vistos como uma mera formalidade burocrática para legalizar uma decisão que já foi tomada. Se o licenciamento ambiental fosse visto como uma contribuição essencial à própria decisão sobre se o projeto deveria ou não ir adiante, então não haveria razão para começar o trabalho de infraestrutura complementar enquanto o projeto principal (a barragem) continua sob consideração.
Estes exemplos são indicações pouco favoráveis para o futuro do Xingu. Eles sugerem que, embora as autoridades possam dizer agora o que bem quiserem sobre planos para Belo Monte operar com uma única barragem, quando, no decorrer do tempo, chegar a hora para começar o trabalho na segunda barragem (Babaquara), é provável que a obra vá adiante de qualquer maneira. Isto significa que os impactos de represas a montante devem ser considerados, e, se estes impactos forem julgados inaceitáveis, então qualquer decisão para construir Belo Monte deve ser acompanhada de um mecanismo confiável para garantir que as barragens rio acima não serão construídas.
Se Belo Monte é realmente economicamente viável sem Babaquara, como afirma a Eletronorte, isto não diminuiria o perigo da história se desdobrar para produzir os desastres ambientais e sociais implícitos no esquema de Babaquara. Isto porque, depois da conclusão de Belo Monte, o processo de tomada de decisão sobre a construção de Babaquara seria dominado por argumentos de que a Babaquara seria altamente lucrativa como meio de aumentar o potencial elétrico de Belo Monte.
Porém, Belo Monte poderia conduzir a um resultado diferente. Antes de se decidir sobre a construção de Belo Monte, o sistema de tomada de decisão sobre barragens hidrelétricas deve ser mudado radicalmente. Devem ser enfrentadas as perguntas básicas sobre o que é feito com a energia, assim como também a questão de quanta energia realmente é necessária. O governo brasileiro deveria deixar de encorajar a expansão de indústrias intensivas de energia. Além disso, estas indústrias, especialmente a de alumínio, deveriam ser fortemente penalizadas, cobrando-as pelo dano ambiental que o uso intensivo de energia implica. Ademais, o governo brasileiro precisa desenvolver uma base institucional confiável, por meio da qual um compromisso possa ser feito para não se construir nenhuma das barragens planejadas a montante de Belo Monte. Devido à série de precedentes na história recente de construção de barragens no Brasil, onde o resultado oposto aconteceu, uma estrutura institucional requereria alguns testes reais antes de ganhar credibilidade adequada para controlar um caso como Belo Monte, onde as tentações para voltar atrás em qualquer promessa desse tipo são extraordinariamente poderosas. Esperar a evolução das instituições ambientais para poder lidar com a Belo Monte não implica a perda do seu potencial futuro: se nenhuma barragem for construída no local de Belo Monte nos próximos anos, a opção de se construir uma barragem lá ainda permanecerá aberta.
Também são necessárias mudanças para conter o papel das empresas de construção em influenciar as prioridades de desenvolvimento no favorecimento de grandes obras de infraestrutura. A grande atratividade que a Belo Monte tem para a comunidade de barrageiros poderia servir, potencialmente, como um bom motivo para induzir todas estas reformulações. Porém, os perigos são múltiplos, e o risco de construir Babaquara paira como uma espada pendurada em cima de todas as discussões de Belo Monte.
Referências
(1) Reuters. 2009. “Lobão vê ‘força demoníaca’ contra licença para usina no Xingu” Reuters, São Paulo, SP, 29 de setembro de 2009. Disponível em: http://www.amazonia.org.br/noticias/noticia.cfm?id=329642.
(2) Brasil, ELETRONORTE. 2002. Complexo Hidrelétrico Belo Monte: Estudos de Viabilidade, Relatório Final. Brasília, DF: Centrais Elétricas do Norte do Brasil (ELETRONORTE), 8 vols., Tomo I, pág. 8-22.
(3) Pinto, L.F. 2003. Corrigida, começa a terceira versão da usina de Belo Monte. Jornal Pessoal [Belém] 28 de novembro de 2003. Disponível em: http://www.amazonia.org.br/opiniao/artigo_detail.cfm?id=90328.
(4) Brasil, ELETROBRÁS. 2009. Aproveitamento Hidrelétrico Belo Monte: Estudo de Impacto Ambiental. Fevereiro de 2009. Rio de Janeiro, RJ: Centrais Elétricas Brasileiras (ELETROBRÁS). grandes. 36 vols.
(5) Brasil, ELETROBRÁS. 2009. Aproveitamento Hidrelétrico Belo Monte: Estudos de Viabilidade, Relatório Complementar, Março 2009. Rio de Janeiro, RJ: Centrais Elétricas Brasileiras (ELETROBRÁS). 2 vols. + anexos.
(6) Fearnside, P.M. 1989. Brazil’s Balbina Dam: Environment versus the legacy of the pharaohs in Amazonia. environmental Management 13(4): 401-423.
(7) Fearnside, P.M. 1990. A Hidrelétrica de Balbina: O Faraonismo Irreversível versus o Meio Ambiente na Amazônia. São Paulo, SP: Instituto de Antropologia Meio-Ambiente (IAMÁ). 63 p.
(8) Fearnside, P.M. 2005. Hidrelétricas Planejadas no Rio Xingu como Fontes de Gases do Efeito Estufa: Belo Monte (Kararaô) e Altamira (Babaquara). p. 204-241 In: Sevá Filho, A.O. (ed.) Tenotã-mõ: Alertas sobre as conseqüências dos projetos hidrelétricos no rio Xingu, Pará, Brasil”, São Paulo, SP: International Rivers Network. 344 p.
(9) Fearnside, P.M. 2002. Greenhouse gas emissions from a hydroelectric reservoir (Brazil’s Tucuruí Dam) and the energy policy implications. Water, Air and Soil Pollution 133(1-4): 69-96.
(10) Fearnside, P.M. 1999. Social impacts of Brazil’s Tucuruí Dam. Environmental Management 24(4), 485-495.
(11) Brasil, ELETRONORTE. 1987. Contribuição da ELETRONORTE para Atendimento das Necessidades Futuras de Energia Elétrica da Amazônia. Brasília, DF: Centrais Elétricas do Norte do Brasil (ELETRONORTE). págs. Amazonas-32 & Pará-12.
(12) Bermann, C. & Martins, O.S. 2000. Sustentabilidade energética no Brasil: Limites e Possibilidades para uma Estratégia Energética Sustentável e Democrática. Rio de Janeiro, RJ: Projeto Brasil Sustentável e Democrático, Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), 151 p. (Série Cadernos Temáticos No. 1). pág. 90.
(13) Brasil, ELETRONORTE. s/d [2002]. Complexo Hidrelétrico Belo Monte: Estudo de Impacto Ambiental- E I A. Versão preliminar. Brasília, DF: Centrais Elétricas do Norte do Brasil (ELETRONORTE), 6 vols. p. 6-82.
(14) Brasil, ELETRONORTE. 2002. Op. Cit. Ref. 2, Tomo II, p. 8-155.
(Tradução abreviada e atualizada Fearnside, P.M., 2006. Dams in the Amazon: Belo Monte and Brazil’s Hydroelectric Development of the Xingu River Basin. Environmental Management 38(1): 16-27).
Mais informações estão disponíveis em http://philip.inpa.gov.br.